quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A EDUCAÇÃO SUPERIOR NO CENÁRIO CONTEMPORÂNEO



Blog “Educação, Didática, Pedagogia e Andragogia”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel. Disponível em http://educacaodidaticapedagogiaeandragogia.blogspot.com.br/

Autoria:
Alfredo Macedo Gomes. Professor do Depto. Fundamentos Sócio-Filosóficos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco.


IDENTIDADES DISCURSIVAS PÚBLICO-ESTATAL E PRIVADO-MERCADO: DESAFIOS TEÓRICOS AO CAMPO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR?

 RESUMO

 O debate acadêmico contemporâneo sobre a educação superior tem sido profundamente marcado por posições analíticas que indicam, explicita ou implicitamente, polaridades entre o público e o privado e entre o estatal e o mercado, ou, na sua forma mais comum, entre o público-estatal e privado-mercado. Parte significativa dos trabalhos analítico-interpretativos as constrói como antinômicas, cuja coexistência é, sobretudo, de negação e oposição. Ao instituí-las como polares e antinômicas, pode-se, dessa forma, criar obstáculos significativos ao potencial analítico-interpretativo do campo. No presente trabalho interrogamos as razões que levaram à construção, uso e reprodução, no campo da educação superior, daquelas identidades discursivas. Causalidades históricas devem ser demonstradas nos dois casos, e causas, principalmente de natureza político-ideológica, portanto, sociais, têm sido fundamentais na formação e reprodução das identidades discursivas referidas. A pesquisa é desenvolvida a partir da análise da produção acadêmica do campo da educação superior.

1.    INTRODUÇÃO

O debate acadêmico contemporâneo sobre a educação superior tem sido profundamente marcado por posições analíticas que indicam e advogam, explicita ou implicitamente, polaridades e antinomias entre o público e o privado e entre o estatal e o mercado, ou, na sua forma mais comum, entre o público-estatal e privado-mercado. Na verdade, no campo educacional, o público tem sido definido como antítese do mercado, o qual tem sido por sua vez definido como privado. De forma simétrica e também evidenciada tem sido o privado definido em oposição ao estatal, o qual, curiosamente, tem sido significado como público. Assim, instituíram-se, objetiva e subjetivamente, no campo analítico-interpretativo da educação, e, em especial, no campo da produção acadêmica da educação superior contemporânea, particularmente a partir de meados dos anos 1990, as identidades discursivas privado-mercado e público-estatal. Parte significativa dos trabalhos analítico-interpretativos as constrói como antinômicas, cuja coexistência é, sobretudo, de negação e oposição. Por isso, ao instituí-las como polares e antinômicas, pode-se, dessa forma, criar obstáculos significativos ao potencial analítico-interpretativo do campo, uma vez que elas mesmas são tomadas como categorias explicativas. Mas não é só isso. Deve-se observar igualmente porque não se tem interrogado os próprios elementos da identidade discursiva privado-mercado e da público-estatal, pois muito embora o privado, em seus múltiplos sentidos, se articule com o mercado, eles não são idênticos, nem em termos de significado nem de significante. O público e o estatal têm inerências semânticas consideráveis, mas não formam simetrias de sentidos. Assim, cabe-nos interrogar as origens e razões que levaram à construção, o uso e a reprodução, no campo da educação superior, daquelas identidades discursivas, primeiramente no sentido antinômico e polar (público-estatal x privado-mercado) e posteriormente no seu sentido identitário. Não resta dúvida, que causalidades históricas devem ser demonstradas nos dois casos, e que causas, principalmente de natureza político-ideológica, portanto, sociais, têm sido fundamentais na formação e reprodução das identidades discursivas referidas.
Ao longo desse texto, além de explorar a problemática acima delimitada, o faremos a partir da análise da produção acadêmica do campo da educação superior[1]. Face aos limites deste trabalho, não devemos ser exaustivo na análise discursiva do corpus.
Movido e motivado pelas circunstâncias e os percalços da carreira profissional de professor-pesquisador, somos levado a lidar de forma sistemática com a produção acadêmica brasileira (e internacional) dedicada à sistematização, compreensão e explicação dos problemas e das políticas públicas para a educação superior. Parte deste vasto material que nos servira e serve de apoio e referencial fundamental à atividade compreensiva e interpretativa, às atividades de ensino, orientação e formação acadêmicas, assim como à orientação da nossa ação política, passa, pois, a constituir, no seu conjunto, o esteio de dúvidas e inquietações epistemológicas e teóricas, parte das quais nos dedicamos a elaborar no presente trabalho. Isto porque as revistas especializadas, as coletâneas de artigos, assim como os livros, teses, dissertações e os projetos de pesquisa que nos chegam, evidenciam, de maneira incontestável, a presença no campo da educação superior do debate sobre o público, o estatal, o privado e mercado (ver Anexo). Mas é necessário acrescentar que tal debate não se apresenta aleatório, assistemático, desarticulado e desinteressado. Em primeiro lugar, ele se materializa na forma das identidades discursivas referidas, apesar da diversidade de temas e de sub-temas a que se dedicam, e curiosamente, uma vez operada a clivagem das identidades discursivas, elas servem como referências para se interrogar, pensar e analisar a diversidade de temas/problemas compreendidos no campo da educação superior. Assim, por exemplo, as análises das políticas de expansão e de democratização do acesso da educação superior, como sub-temas e problemas do campo, são referenciadas nas identidades discursivas público-estatal e privado-mercado, como categorias macros. Do mesmo modo, apresentam-se nos trabalhos sobre a avaliação da educação superior, sobre as políticas de financiamento e a gestão institucional, assim como nas políticas de produção de conhecimento e autonomia institucional ou universitária, entre outros. Em segundo lugar, a produção acadêmica do campo, apesar da diversidade de temas abordados e de enfoques teórico-metodológicos, se apóia no que denominamos aqui de marcos referenciais macros ou grandes teorias. Os estudos desenvolvidos, na sua grande maioria, recorrem a uma base explicativa comum, previamente formulada, mas articulada e reafirmada, para imprimir significado e coerência analítico-interpretativa à ‘realidade’ das políticas públicas para a educação superior a partir dos anos 1990. Constituem os marcos referenciais macros teorias do Estado de Bem Estar Social e a teoria neoliberal. Como conseqüência, pouca teorização tem aparecido como produto. Em terceiro lugar, iremos fazer um esforço de apresentar uma discussão sobre os limites da reprodução das identidades discursivas e discutir os sentidos dos seus elementos constituintes e suas relações. Iniciemos, então, pela análise das características essenciais das identidades discursivas público-estatal e privado-mercado, a partir de extratos selecionados da produção acadêmica do campo da educação superior.

2. PÚBLICO-ESTATAL E PRIVADO-MERCADO NA EDUCAÇÃO SUPERIOR

Em passagem de simbolismo exemplar, os organizadores do número especial da Revista Educação e Sociedade (no. 88, 2004), elaboram:

“Um dilema hamletiano ronda a universidade como bem público: reformar-se e/ou render-se às exigências da mercantilização do conhecimento e da deserção do Estado de seu papel de principal patrocinador e mantenedor da educação superior” (2004: 647. Grifos nossos).

            Esta passagem reúne, de forma sinteticamente compreensiva, as injunções que demarcam o nosso tema, exprimindo as componentes essenciais e polares das identidades discursivas público-estatal e privado-mercado. Em primeiro lugar, ao definir a universidade como bem público – esfera de referência na qual se inscreve a problemática da universidade – afirma-se que ela não é bem privado. No entanto, cabe observar que não deixa de ser definida, na passagem, como um bem, ainda que público. Como bem público[2] o usufruto deve ser direito de cidadania (2004: 648). Em segundo lugar, o dilema hamletiano que a universidade vive exprime a concorrência ou disputa entre as identidades discursivas, ou seja, ou ela se reforma para subsistir como bem público – mantendo a identidade discursiva público-estatal, ou ela tomará o rumo da “mercantilização do conhecimento” por causa da “deserção do Estado” como principal patrocinador e mantenedor – no sentido da identidade discursiva privado-mercantil. Aqui se pode observar que a ação estatal é fundamental à definição do bem público, particularmente através do financiamento e manutenção estatal das universidades estatais. Em terceiro lugar, ao afirmar que a universidade como bem público vive um dilema hamletiano, este deve ser dramática e metaforicamente interpretado como o dilema entre ser ou não ser, porque esta é a questão! (to be or not to be, that’s the question!). É um dilema existencial, de escolha radical, entre ser, existir, persistir conforme princípios e valores específicos, históricos, auto-referentes e auto-determinantes e não ser, deixar de ser, render-se e tornar-se aquilo que não se é – mercadoria, objeto, negócio. Mais uma vez as identidades discursivas se apresentam. Todavia, a mão inteligente do escritor coletivo (os organizadores) caracteriza assim o dilema: reformar-se e/ou render-se... Este enunciado compreende três possibilidades interpretativas, e não duas, como quer o dilema hamletiano:

1)   reformar-se – a universidade como bem público deve reformar-se, a partir de movimento interno, a partir de si mesma, para continuar a existir como bem público. Registremos que a ação reformar-se implica a autonomia de fazê-lo, segundo normas, valores, princípios, práticas e rotinas de uma instituição social (Editorial, 2004: 648) histórica e específica, ou seja, ela não deve ser reformada, mas reformar-se;
2)   ou render – o que implica a sujeição da universidade a valores, princípios, práticas e rotinas heterônomas e heterodoxas próprias do mundo mercantil e empresarial, convertendo-se em bem privado e mercadoria. Essas duas alternativas já simbolizam o dilema hamletiano, pois tipificam a luta essencial entre o ser e o não ser da universidade. No entanto, também aparece
3)   reformar-se e render a mercantilização do conhecimento e a deserção do Estado... – a universidade como bem público pode reformar-se e render-se à mercantilização e à deserção do Estado. Neste caso, pode-se dizer que a universidade é reformada, mas do que reformar-se.

            A análise da passagem acima movimenta termos-chave das identidades discursivas público-estatal e privado-mercado. Acrescentamos, todavia, que a recorrência das identidades discursivas pode ser capturada em parte significativa da produção acadêmica da educação superior. Não é possível arrolar todos aqueles extratos que as sintetizam. Mas encontramos, por exemplo, em Dias Sobrinho (2004: 704) que “há uma forte disputa entre duas concepções de educação superior”, caracterizada a primeira como “uma instituição que produz conhecimentos e forma cidadãos para as práticas da vida social e econômica, em benefício da construção de nações livres e desenvolvidas” e a segunda como “função da economia e dos interesses individuais e privados”. Isso levará a existência de “duas tendências dominantes na avaliação, conforme se lhe atribua mais a função ético-política de formação da cidadania, promoção de sujeitos autônomos, emancipação e solidariedade social ou, predominantemente, a função técnico-burocrático-economicista, pretensamente objetiva, de controle de produtos e instrumentalização da educação em função da economia de mercado” (Dias Sobrinho, 2004: 710). Em Mancebo (2004: 853), que analisa as políticas para a educação superior no governo Lula, destaca-se que o PROUNI visa “promover um embaralhamento das barreiras entre o público e o privado, abrindo espaço para a emergência de uma esfera pública não-estatal, uma forma hibrida entre o estatal, o privado e o público”. Em Leher (2001: 184), encontra-se que “o estudo pretendeu oferecer elementos capazes de corroborar a tese de que universidades públicas estão sendo deslocadas da esfera pública para a privada por meio da política de autonomia, em seu sentido liberal, nos termos atualmente reivindicados pelos neoliberais.” Em outra passagem, Leher (2001: 185) afirma que é “impossível ignorar que esse quadro tenha repercussões muito negativas para o projeto de universidade com autonomia científica, caráter estatal, gratuita e democrática”, o quadro, obviamente, de privatização e mercantilização da universidade público. Em estudo que trata das transformações recentes e debates atuais no campo da educação superior no Brasil, Dourado, Oliveira e Catani (2003: 20), observam que “foram implementados políticas e mecanismos que intensificaram os processos de mercantilização da produção do trabalho acadêmico e da gestão universitária, consubstanciando uma metamorfose nas instituições de ensino superior (IES), particularmente na rede federal, visando a adequá-las e ajustá-las ao paradigma gerencialista adotado na reforma do Estado e à lógica de privatização e mercantilização dos bens e serviços acadêmicos”. O estudo de Silva Jr. e Squissardi (2001) toma como categorias centrais o público e o privado, e o estatal e o mercando. Nesse trabalho encontramos, em vários momentos, a partir da detalhada e rica análise que realizam sobre a reforma do estado e a educação superior da década de 1990, os elementos centrais das identidades discursivas, sob o prisma da reconfiguração das relações entre esses “espaços”, pois, como dizem os autores, há uma “orientação reordenadora do espaço público, isto é, a mesma lógica presente no espaço do mercado estritamente capitalista” (2001: 75), ou a “reorganização desse espaço público, segundo a lógica do mercado, em meios a redefinição dos conceitos de públicos e de privado” (2001: 78).
            Os extratos simbolizam, de forma significativa, a presença crescente das identidades discursivas público-estatal e privado-mercado como macro-referências fundamentais na orientação e estruturação discursiva do campo da produção acadêmica da educação superior no Brasil. Obviamente que há diferenças consideráveis no emprego e conceituação daquelas categorias, assim como de suas componente-centrais (bem público, interesse público, função pública, direito público, cidadania, conhecimento socialmente relevante; bem privado, educação como mercadoria, prestação de serviços, privatização, mercantilização, conhecimento economicamente relevante, entre outros), ou seja, os atores acadêmicos os utilizam sob orientações, objetivos e interesses variados, como é possível verificar em tratamento objetivo, fundamentado e baseado numa revisão ampla do tema público e privado (Silva Jr. e Squissardi, 2001: 81-120), que busca demonstrar que “os espaços público e privado são fluídos, mas distintos e relacionados entre si. As distinções entre as instituições da sociedade civil estabelecer-se-ão a partir de suas identidades e, jamais, tendo como referência somente o público ou privado.” (2001: 101). Neste sentido, os autores demonstram que a compreensão da educação superior no Brasil e suas transformações “somente pode ser feita no contexto da redefinição das esferas pública e privada” (2001: 101). Muito embora os autores tomem como referência direta a compreensão da educação superior no período do governo FHC, tais categorias são também relevantes e pertinentes para o entendimento e explicação da educação superior no governo Lula.
            Por outro lado, um dos atores acadêmicos que trabalha de forma a reforçar uma visão polar e antinômica das identidades discursivas público-estatal e privado-mercado é Leher (2001, 2004). Nos dois trabalhos aqui analisados opera uma clivagem político-ideológica fundamental nas identidades discursivas público-estatal e privado-mercado. Essa clivagem[3] se repete em vários outros trabalhos acadêmicos, os quais, muitas vezes, transformam relações e categorias históricas, portanto, singulares social e historicamente demarcadas, em relações predominantemente ideológicas, conjunturais. A seguir explicitaremos esse processo.

3. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DAS CAUSAS SÓCIO-HISTÓRICAS DAS IDENTIDADES DISCURSIVAS

            Cabe-nos agora a tarefa de sistematizar algumas das causas sócio-históricas que levaram à construção, uso e reprodução, no campo da educação superior do Brasil, daquelas identidades discursivas.
            Em primeiro lugar, os usos recentes deram-se em função das transformações, nos países centrais, dos Estados de Bem Estar Social e do modelo keynesiano pós-1945, em função da chamada “crise fiscal do Estado” e do modelo fordista de produção econômica, a partir da implementação de amplo programa de reforma neoliberais, orientado pelo e para um novo desenho de mercado, dentro dos marcos da acumulação flexível. A redefinição do aparato, das funções, das formas de intervenção e dos princípios e valores do Welfare State, tem implicações fundantes nas concepções, identidades e redefinição das relações entre a esfera público-estatal e a privada, e o Estado e o mercado passam a ser considerados como instrumentos centrais para o desenvolvimento econômico[4]. Como as transformações neoliberais e da acumulação flexível tem lugar primeiramente nos países centrais[5] a partir da ascensão de Thatcher na Inglaterra e Reagan nos Estados Unidos, portanto a partir da segunda metade da década de 1970, e que se aprofundam nos anos 1980 nos setores educacionais e da saúde – para ficarmos nesses.
            Diferentemente, o debate e as políticas sociais no Brasil dos anos 1980 foram predominantemente marcados por temas que indicam a reconquista e o fortalecimento dos direitos sociais e políticos, na perspectiva da ampliação e recomposição dos serviços públicos, da participação social e da redemocratização da sociedade e de suas instituições sociais, entre elas, a escola e universidade. Em outras palavras, as tensões, polaridades e antinomias entre o público e o privado não se colocavam para a grande maioria da população, assim como não constituíam o problema central tematizado no campo acadêmico da educação superior. A literatura demonstra que o tratamento era mais no sentido do diagnóstico dos problemas específicos dos setores público e privado da educação superior. Um dos projetos importantes desse período, formulado pela comissão de notáveis, que resultou no GERES e em Projeto de Lei, praticamente não tencionara as relações entre o público e o privado, e o mercado era visto como espaço-fim de destino dos egressos universitários, como em períodos históricos precedentes. O mercado, no Brasil dos anos oitenta, no campo da educação superior, não era tematizado como “portador de racionalidade sócio-política e agente principal do bem-estar da república” (Chauí, 2000: 211), ou seja, ele não havia sido capacitado para funcionar como instrumento de controle, regulação e coordenação da educação superior (Gomes, 2003). Portanto, o mercado não é ainda a antítese do estatal, porque historicamente, parece existir um fenômeno que possamos denominar de identidade estado-mercado, no sentido restrito do mesmo ser proprietário de forças produtivas, produtor de mercadorias, e empregador considerável de força de trabalho em vários segmentos produtivos e nos serviços públicos.
            Na verdade, se esta hipótese tem sustentação sócio-histórica, a identidade estado-mercado ocorre pelo alto nível de regulação estatal então existente, em primeiro lugar por ser o Estado produtor de bens e mercadorias, portanto, produtor direto de mais-valia; em segundo lugar, porque o mercado de trabalho era altamente controlado através do controle de preços de bens e serviços, e da regulamentação das profissões, fenômeno esse correlacionado ao desenvolvimento da educação superior no Brasil. A educação pública preserva então o sentido de anti-mercadoria, de bem público, provido pelo Estado[6], dentro dos marcos da preparação e reprodução da mercadoria força de trabalho, necessária ao processo de acumulação capitalista. Argumentamos, então, que uma mudança histórica poderá ser observada, que é a emergência, a partir das políticas governamentais, como a reforma do Estado, de identidades discursivas que polarizam o estatal e o mercado, a partir dos programas de privatização, desregulamentação e liberalização que foram executados pelo governo FHC. Tais iniciativas se refletem fortemente no seio das universidades púbico-estatais, e se expressam nas preocupações e questões tratadas no campo da produção acadêmica do ensino superior, sobretudo a partir de 1995.
            Por outro lado, a privatização, no contexto dos anos 1980, significava, sobretudo, a expansão das matrículas nas instituições privadas, assim como o aumento do número de instituições privadas relativamente às instituições públicas[7]. Como sabemos, as primeiras passaram, a partir dos anos 1960, a dominar as matriculas na educação superior no Brasil, tendência que se acentua significativamente durante o período do governo FHC, e que tende a se consolidar durante o governo Lula[8]. Com certo exagero, mas que talvez seja útil para o nosso entendimento, pode-se dizer que o público e o privado nos anos 1980 constituem setores relativamente emulados, sendo a tendência dominante, já nos anos 1990, a de reestruturar e aperfeiçoar os instrumentos de controle estatal sobre o setor e as instituições privadas. Evidencia forte desse elemento é o Exame Nacional de Cursos. Particularmente, no campo educacional tinha-se uma instituição mediadora, como o Conselho Federal de Educação, entre o setor privado, enquanto setor de ensino ‘regulado’, e o Estado, enquanto portador de racionalidade político-burocrático desprovido de capacidade regulatória qualitativa e de mecanismos indutivos do mercado da educação superior. Registre-se, também, que as interpenetrações, a indefinição de limites e as confusões de papéis entre o público e o privado resultavam, sobretudo, das históricas práticas patrimoniais do Estado e das elites políticas e econômicas, assim como das práticas clientelísticas e corporativas então predominantes (Sorg, 2000).
            As relações entre o público – ou melhor, o poder estatal – e o (setor) privado dos anos 1990 poderiam ser definidas como desprovidas das condições necessárias para realizar a utilidade pública, apesar de atender mais de 60% da população estudantil em seus cursos de graduação, e apesar de ser, sobretudo, um negócio, não era, contudo, um mercado no sentido que vai ser imprimido a partir dos anos 1990, pois era um mercado profundamente tosco, rudimentar.
            Neste momento, é aconselhável tomarmos emprestado uma definição de mercado, mesmo que sob uma só perspectiva, pois poderá contribuir para a compreensão do debate. Para Celso Furtado (1983: 88),

“mercado é um conceito amplo que abarca distintos mecanismos destinados a recolher, elaborar e transmitir informações a serem utilizadas pelos agentes econômicos. Essas informações são diversas e apresentadas de forma distinta conforme o agente seja um consumidor, um empresário, um comprador de títulos etc. Mas a eficácia da decisão dependerá sempre da qualidade e da oportunidade das informações a que tem acesso o agente. Os mercados produzem um fluxo permanente de informações, sob a forma de indicadores que são uma tradução sintética de milhares de dados. (...)”. (Grifos do autor).


            A presente definição de mercado ou de mercados permite compreender que eles se diferenciam da produção. Os mercados são constituintes dos processos de distribuição e troca, realizando seu fim-último mediante o consumo daquilo que circula no mercado – a mercadoria. (Marx, 1991). Como o(s) mercado(s) forma(m)-se e opera(m) através da informação, elaboração e transmissão de informações, seus instrumentos e funções são condicionadas historicamente, portanto, a base técnico-científica é fundamental na remodelação do mesmo. Logo, a base técnico-científica não apenas modificam o mercado; elas serão incorporadas nos instrumentos de ação do estado, e passam a redefinir as relações entre o estatal e mercado, assim como entre a esfera pública e a privado. O que observamos é que a produção acadêmica do campo superior não revisão crítica e histórica da noção de mercado, a utilizando na forma que as identidades discursivas público-privado e estatal-mercado a havia cristalizado, pela “imigração de ideais” que “raramente se faz sem dano... porque ela separa as posições culturais do sistema de referências teóricas em relação às quais as idéias se definiram, consciente ou inconscientemente...” (Bourdieu, 2004: 7).
            Enfim, nos anos 1980 e início dos 1990, o público, o privado, o mercado e estatal, como categorias explicativas, como práticas discursivas e espaços sociais, carregam significações relativamente diferentes das que vão lhes aderir a partir do governo FHC. Foi no contexto dos anos 1990, no Brasil, que serão produzidas novas significações sobre o público, o privado, o estatal e o mercado que levarão a estruturação das identidades discursivas público-estatal e privado-mercado, sob a influência, por um lado, da crítica avassaladora dos representantes das teorias neoliberais, que acolhe o mercado – num sentido especifico – como categoria fundamental, e das políticas sociais e de reforma do Estado, e por outro lado, das teorias, nos vários campos das ciências sociais e humanas, em especial na produção acadêmica da educação superior, em defesa do Estado Democrático e da “resistência do Estado-providencia” (Afonso, 2000). Essas duas posições teóricas representam um debate político-ideológico radical no que tange ao papel do Estado, o qual ocorre dentro dos marcos sociais, políticos e econômicos da sociedade capitalista contemporânea. Não se questiona, por exemplo, “a propriedade privada dos fatores de produção – terra, força de trabalho e capital”, nem o capitalismo “como um sistema econômica no qual decisões são dirigidas pelas forças do mercado” (Slaughter and Lislie, 1997: 9). O que se questiona, e, portanto, se quis reconfigurar, foi o papel do Estado em relação à execução, provimento, financiamento, regulação, controle e avaliação dos bens públicos educacionais. É partir dessa matriz que nasce polarizações e antinomias das e em torno daquelas identidades discursivas.
Contraditoriamente, os diversos autores que analisam e produz a crítica ou a defesa das políticas estatais e governamentais da era FHC, no campo da educação superior, assumem e reproduz nos seus trabalhos, implícita e explicitamente, aquelas duas posições, que passamos a denominar de marcos referenciais macros. De forma sistemática, a produção acadêmica do campo da educação superior, apesar da diversidade de temas abordados e de enfoques teórico-metodológicos assumidos, recorrem a uma base explicativa comum, previamente formulada, mas articulada e reafirmada, para imprimir significado e coerência analítico-interpretativa à ‘realidade’ das políticas públicas para a educação superior nos 1990. Constituem os marcos referenciais macros, as teorias do Estado de Bem Estar Social e o neoliberalismo, articulados com a teoria da acumulação flexível e o papel dos organismos internacionais[9].

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

            No presente trabalho, procuramos analisar as origens e razões que levaram à construção, o uso e a reprodução, no campo da educação superior, das identidades discursivas público-privado e estatal-mercado, argumentando que se convencionou o emprego polar e antinômico dos mesmos, em parte importante da produção acadêmica do campo da educação superior. A conclusão a que chegamos é que no terreno das relações entre aquelas componentes e a universidade ou a educação superior, se apresentam desafios consideráveis aos nossos fundamentos analítico-interpretativos, ou termos mais gerais, às nossas bases teóricas. Por isso, se faz necessário o retorno ao trabalho prévio de revisão e teorização destas categorias, para construirmos, no campo da educação superior, um entendimento mais profundo, consistente e fundamentado, e assim podermos avançar em relação às proposições teóricas bipolares. Isto porque o fenômeno da educação superior, complexo e heterogêneo em si mesmo, deve ser compreendido a partir de uma perspectiva que leve em consideração as causalidades históricas e as causalidades sociais. Com isso queremos reafirmar que as significações do público, privado, mercado e estado, carregam significados que são social e historicamente construídos, não podendo compreendê-las e explicá-las, sem procurarmos interrogá-las à luz dos contextos sócio-históricos, a partir dos quais ganham relevância as políticas públicas para a educação superior, que constituem nosso objeto central de investigação. Em outras palavras, a questão que nos colocamos e tentamos responder é: a construção da identidade discursiva privado-mercado resiste à verificação histórica e sociológica quando analisada em suas matrizes gerais? Da mesma forma, essa identidade discursiva, empregada no campo da pesquisa educacional e da educação superior, resiste a crítica sociológica e histórica? Por outro lado, tão profundamente instituído no campo acadêmico da política da educação superior figura a identidade discursiva público-estatal, que tem sido constituída como significação objetiva e imaginária em oposição à identidade discursiva privado-mercado. Essa também deve ser submetida ao inventário sócio-histórico, porque certamente não resistira à verificação crítica sócio-histórica. A resposta as questões acima parece ser negativa, mas devemos procurar compreendê-los, caracterizá-las e fundamentá-las para além das hipóteses e considerações iniciais que desenvolvemos no presente texto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] A pesquisa divide-se em três partes: a primeira refere-se à análise da produção acadêmica da educação superior de autores/atores acadêmicos que se agrupam em torno de proposições/posições criticas em relação às políticas públicas para a educação superior; a segunda é dedicada a analise da produção acadêmica de autores que participam/ram da formulação e coordenação de políticas e mantinham ou mantém uma posição de “alinhamento” com as mesmas; e a terceira compreenderá a análise dos documentos e legislação concernentes às políticas para a educação superior nos governos FHC e Lula. No presente trabalho, reunimos algumas considerações analítico-interpretativas referente à primeira parte da pesquisa.
[2] O ex-ministro da Educação, Tarso Genro, e o atual ministro Fernando Haddad utilizam a expressão interesse público, função pública, ou missão de natureza pública, querendo com isso institui prática discursiva nova relativamente ao público e ao privado, ou seja, como discurso oficial das políticas públicas que encarna, o emprego de tais expressões tem por objetivo ‘superar’ as identidades discursivas polares, uma vez que a finalidade pública deve ser realizada em qualquer instituição, seja ela pública, privada com fins lucrativos, comunitária, filantrópica ou não-estatal, não necessariamente na linha do que Bresser Pereira (1998) denomina de “público não-estatal”. Lembremos que bem público significa bem comum, e que bem ou bens compreende também um sentido econômico.
[3] O significado de clivagem que empregamos é uma adaptação do termo clivagem do ego, desenvolvido por S. Freud, que o utiliza para “designar um fenômeno muito particular que ele vê operar sobretudo no fetichismo e nas psicoses: a coexistência, no seio do ego, de duas atitudes para com a realidade exterior na medida em que esta vem contrariar uma exigência pulsional: uma tem em conta a realidade, a outra nega a realidade em causa e coloca em seu lugar um produto do desejo.” (Lapanche e Pontalis, 1988: 101).     
[4] Para uma leitura das transformações entre governo e educação superior na Europa Ocidental, ver Neave and Van Vught (1991) e Goedegebuure (1994). Em relação à crise do Welfare State e ao neoliberalismo, entre a vasta literatura acumulada, ver Mishra (1984), Sader e Gentili, (1999), Chauí (2000), Anderson (1995), Gentili (1998), Silva Jr e Squissard (2001).
[5] Não podemos esquecer o fenômeno no Chile a partir da década de 1970, amplamente referida na literatura do campo da educação superior.
[6] Aliás, bastante restrito, demasiadamente fechado e elitista, o acesso e usufruto da educação, nesse período.
[7] Cunha (2000: 41), por exemplo, entende que: “A privatização e a fragmentação institucional são suas características principais. Cerca de 60% dos estudantes de graduação estão matriculados em instituições privadas; (...)”. O mesmo sentido de privatização é encontrado em Trindade (2001: 26-32). 
[8] É relevante destacar que as políticas de expansão dos governos FHC e Lula são demasiadamente diferentes, muito embora os resultados observados sejam tomados como uma linha continua entre os dois governos, por manter a tendência de ampliar a privatização da oferta. No entanto, divergem radicalmente quando analisada a partir da ação estatal, porque o crescimento é resultado da isenção fiscal que poderia ser destinados a complementar o “fundo público” (Oliveira, 1998), claro, através da regulamentação que, segundo o ministro Haddad, são “isenções fiscais constitucionais concedidas às instituições privadas, permitindo a concessão de 112 mil bolsas de estudos no âmbito do Prouni e a ampliação do Fies.” (Folha de São Paulo, 25/09/2005). No governo precedente a expansão do setor privado ocorria tão-somente mediante relações mercantis entre agentes econômicos, cuja mercadoria é a educação.
[9] Anderson (1995), Oliveira (1998), Chauí (2000), Friedman (1982), Hayek (1997), Bresser Pereira (1998) e vários ‘documentos’ do Banco Mundial, entre eles se destaca La enseñanza superior: as lecciones derivados de la experiência, Washington, 1994, são as produções que, lidas e relidas, sintetizadas e interpretadas, ouvidas, anotadas e incorporadas, constituem parte relevante da formulação dos marcos referenciais macros, presente na produção acadêmico do campo da educação superior.




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