Blog “Educação, Didática, Pedagogia e
Andragogia”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel. Disponível em http://educacaodidaticapedagogiaeandragogia.blogspot.com.br/
Autoria:
Alfredo Macedo Gomes. Professor
do Depto. Fundamentos Sócio-Filosóficos da Educação e do Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco.
IDENTIDADES
DISCURSIVAS PÚBLICO-ESTATAL E PRIVADO-MERCADO: DESAFIOS TEÓRICOS AO CAMPO DA
EDUCAÇÃO SUPERIOR?
RESUMO
O debate acadêmico contemporâneo sobre a educação superior
tem sido profundamente marcado por posições analíticas que indicam, explicita
ou implicitamente, polaridades entre o público e o privado e entre o estatal e
o mercado, ou, na sua forma mais comum, entre o público-estatal e
privado-mercado. Parte significativa dos trabalhos analítico-interpretativos as
constrói como antinômicas, cuja coexistência é, sobretudo, de negação e
oposição. Ao instituí-las como polares e antinômicas, pode-se, dessa forma,
criar obstáculos significativos ao potencial analítico-interpretativo do campo.
No presente trabalho interrogamos as razões que levaram à construção, uso e
reprodução, no campo da educação superior, daquelas identidades discursivas.
Causalidades históricas devem ser demonstradas nos dois casos, e causas,
principalmente de natureza político-ideológica, portanto, sociais, têm sido
fundamentais na formação e reprodução das identidades discursivas referidas. A
pesquisa é desenvolvida a partir da análise da produção acadêmica do campo da
educação superior.
1. INTRODUÇÃO
O debate acadêmico contemporâneo sobre a educação superior
tem sido profundamente marcado por posições analíticas que indicam e advogam,
explicita ou implicitamente, polaridades e antinomias entre o público e o
privado e entre o estatal e o mercado, ou, na sua forma mais comum, entre o
público-estatal e privado-mercado. Na verdade, no campo educacional, o público
tem sido definido como antítese do mercado, o qual tem sido por sua vez
definido como privado. De forma simétrica e também evidenciada tem sido o
privado definido em oposição ao estatal, o qual, curiosamente, tem sido
significado como público. Assim, instituíram-se, objetiva e subjetivamente, no
campo analítico-interpretativo da educação, e, em especial, no campo da
produção acadêmica da educação superior contemporânea, particularmente a partir
de meados dos anos 1990, as identidades discursivas privado-mercado e público-estatal.
Parte significativa dos trabalhos analítico-interpretativos as constrói como
antinômicas, cuja coexistência é, sobretudo, de negação e oposição. Por isso,
ao instituí-las como polares e antinômicas, pode-se, dessa forma, criar obstáculos
significativos ao potencial analítico-interpretativo do campo, uma vez que elas
mesmas são tomadas como categorias explicativas. Mas não é só isso. Deve-se
observar igualmente porque não se tem interrogado os próprios elementos da
identidade discursiva privado-mercado e da público-estatal, pois muito embora o
privado, em seus múltiplos sentidos, se articule com o mercado, eles não são
idênticos, nem em termos de significado nem de significante. O público e o
estatal têm inerências semânticas consideráveis, mas não formam simetrias de
sentidos. Assim, cabe-nos interrogar as origens e razões que levaram à
construção, o uso e a reprodução, no campo da educação superior, daquelas
identidades discursivas, primeiramente no sentido antinômico e polar (público-estatal
x privado-mercado) e posteriormente no seu sentido identitário. Não resta
dúvida, que causalidades históricas devem ser demonstradas nos dois casos, e
que causas, principalmente de natureza político-ideológica, portanto, sociais,
têm sido fundamentais na formação e reprodução das identidades discursivas
referidas.
Ao longo desse texto, além de explorar a problemática acima
delimitada, o faremos a partir da análise da produção acadêmica do campo
da educação superior[1].
Face aos limites deste trabalho, não devemos ser exaustivo na análise
discursiva do corpus.
Movido e motivado pelas circunstâncias e os percalços da
carreira profissional de professor-pesquisador, somos levado a lidar de forma
sistemática com a produção acadêmica brasileira (e internacional) dedicada à
sistematização, compreensão e explicação dos problemas e das políticas públicas
para a educação superior. Parte deste vasto material que nos servira e serve de
apoio e referencial fundamental à atividade compreensiva e interpretativa, às
atividades de ensino, orientação e formação acadêmicas, assim como à orientação
da nossa ação política, passa, pois, a constituir, no seu conjunto, o esteio de
dúvidas e inquietações epistemológicas e teóricas, parte das quais nos
dedicamos a elaborar no presente trabalho. Isto porque as revistas
especializadas, as coletâneas de artigos, assim como os livros, teses,
dissertações e os projetos de pesquisa que nos chegam, evidenciam, de maneira
incontestável, a presença no campo da educação superior do debate sobre
o público, o estatal, o privado e mercado (ver Anexo). Mas é necessário
acrescentar que tal debate não se apresenta aleatório, assistemático,
desarticulado e desinteressado. Em primeiro lugar, ele se materializa na forma
das identidades discursivas referidas, apesar da diversidade de temas e de
sub-temas a que se dedicam, e curiosamente, uma vez operada a clivagem das
identidades discursivas, elas servem como referências para se interrogar,
pensar e analisar a diversidade de temas/problemas compreendidos no campo da
educação superior. Assim, por exemplo, as análises das políticas de expansão e
de democratização do acesso da educação superior, como sub-temas e problemas do
campo, são referenciadas nas identidades discursivas público-estatal e
privado-mercado, como categorias macros. Do mesmo modo, apresentam-se nos
trabalhos sobre a avaliação da educação superior, sobre as políticas de
financiamento e a gestão institucional, assim como nas políticas de produção de
conhecimento e autonomia institucional ou universitária, entre outros. Em
segundo lugar, a produção acadêmica do campo, apesar da diversidade de temas
abordados e de enfoques teórico-metodológicos, se apóia no que denominamos aqui
de marcos referenciais macros ou grandes teorias. Os estudos desenvolvidos, na sua grande
maioria, recorrem a uma base explicativa comum, previamente formulada, mas
articulada e reafirmada, para imprimir significado e coerência
analítico-interpretativa à ‘realidade’ das políticas públicas para a educação
superior a partir dos anos 1990. Constituem os marcos referenciais macros
teorias do Estado de Bem Estar Social e a teoria neoliberal. Como conseqüência,
pouca teorização tem aparecido como produto. Em terceiro lugar, iremos fazer um
esforço de apresentar uma discussão sobre os limites da reprodução das
identidades discursivas e discutir os sentidos dos seus elementos constituintes
e suas relações. Iniciemos, então, pela análise das características essenciais
das identidades discursivas público-estatal e privado-mercado, a partir de
extratos selecionados da produção acadêmica do campo da educação superior.
2. PÚBLICO-ESTATAL E PRIVADO-MERCADO NA EDUCAÇÃO
SUPERIOR
Em passagem de simbolismo exemplar, os organizadores do
número especial da Revista Educação e Sociedade (no. 88, 2004),
elaboram:
“Um dilema hamletiano ronda a universidade como bem
público: reformar-se e/ou render-se às exigências da mercantilização
do conhecimento e da deserção do Estado de seu papel de principal
patrocinador e mantenedor da educação superior” (2004: 647. Grifos nossos).
Esta passagem reúne, de forma
sinteticamente compreensiva, as injunções que demarcam o nosso tema, exprimindo
as componentes essenciais e polares das identidades discursivas público-estatal
e privado-mercado. Em primeiro lugar, ao definir a universidade como bem
público – esfera de referência na qual se inscreve a problemática da
universidade – afirma-se que ela não é bem privado. No entanto, cabe
observar que não deixa de ser definida, na passagem, como um bem, ainda
que público. Como bem público[2]
o usufruto deve ser direito de cidadania (2004: 648). Em segundo lugar,
o dilema hamletiano que a universidade vive exprime a
concorrência ou disputa entre as identidades discursivas, ou seja, ou ela se
reforma para subsistir como bem público – mantendo a identidade
discursiva público-estatal, ou ela tomará o rumo da “mercantilização
do conhecimento” por causa da “deserção do Estado” como principal patrocinador
e mantenedor – no sentido da identidade discursiva privado-mercantil.
Aqui se pode observar que a ação estatal é fundamental à definição do bem
público, particularmente através do financiamento e manutenção estatal das
universidades estatais. Em terceiro lugar, ao afirmar que a universidade como
bem público vive um dilema hamletiano, este deve ser dramática e
metaforicamente interpretado como o dilema entre ser ou não ser, porque esta
é a questão! (to be or
not to be, that’s the question!). É um dilema existencial, de
escolha radical, entre ser, existir, persistir conforme princípios e
valores específicos, históricos, auto-referentes e auto-determinantes e não
ser, deixar de ser, render-se e tornar-se aquilo que não se é
– mercadoria, objeto, negócio. Mais uma vez as identidades discursivas se
apresentam. Todavia, a mão inteligente do escritor coletivo (os organizadores)
caracteriza assim o dilema: reformar-se e/ou render-se... Este enunciado
compreende três possibilidades interpretativas, e não duas, como quer o dilema
hamletiano:
1) reformar-se
– a universidade como bem público deve reformar-se, a partir de
movimento interno, a partir de si mesma, para continuar a existir como bem
público. Registremos que a ação reformar-se implica a autonomia de
fazê-lo, segundo normas, valores, princípios, práticas e rotinas de uma instituição
social (Editorial, 2004: 648) histórica e específica, ou seja, ela não deve
ser reformada, mas reformar-se;
2) ou
render – o que implica a sujeição da universidade a valores,
princípios, práticas e rotinas heterônomas e heterodoxas próprias do mundo
mercantil e empresarial, convertendo-se em bem privado e mercadoria.
Essas duas alternativas já simbolizam o dilema hamletiano, pois tipificam a
luta essencial entre o ser e o não ser da universidade. No
entanto, também aparece
3) reformar-se
e render a mercantilização do conhecimento e a deserção do Estado... – a
universidade como bem público pode reformar-se e render-se à mercantilização e
à deserção do Estado. Neste caso, pode-se dizer que a universidade é reformada,
mas do que reformar-se.
A
análise da passagem acima movimenta termos-chave das identidades discursivas público-estatal
e privado-mercado. Acrescentamos, todavia, que a recorrência das
identidades discursivas pode ser capturada em parte significativa da produção
acadêmica da educação superior. Não é possível arrolar todos aqueles extratos
que as sintetizam. Mas encontramos, por exemplo, em Dias Sobrinho (2004: 704)
que “há uma forte disputa entre duas concepções de educação superior”,
caracterizada a primeira como “uma instituição que produz conhecimentos e forma
cidadãos para as práticas da vida social e econômica, em benefício da
construção de nações livres e desenvolvidas” e a segunda como “função da
economia e dos interesses individuais e privados”. Isso levará a existência de
“duas tendências dominantes na avaliação, conforme se lhe atribua mais a função
ético-política de formação da cidadania, promoção de sujeitos autônomos,
emancipação e solidariedade social ou, predominantemente, a função
técnico-burocrático-economicista, pretensamente objetiva, de controle de
produtos e instrumentalização da educação em função da economia de mercado”
(Dias Sobrinho, 2004: 710). Em Mancebo (2004: 853), que analisa as políticas
para a educação superior no governo Lula, destaca-se que o PROUNI visa
“promover um embaralhamento das barreiras entre o público e o privado, abrindo
espaço para a emergência de uma esfera pública não-estatal, uma forma hibrida
entre o estatal, o privado e o público”. Em Leher (2001: 184), encontra-se que
“o estudo pretendeu oferecer elementos capazes de corroborar a tese de que
universidades públicas estão sendo deslocadas da esfera pública para a privada
por meio da política de autonomia, em seu sentido liberal, nos termos
atualmente reivindicados pelos neoliberais.” Em outra passagem, Leher (2001:
185) afirma que é “impossível ignorar que esse quadro tenha repercussões muito
negativas para o projeto de universidade com autonomia científica, caráter
estatal, gratuita e democrática”, o quadro, obviamente, de privatização e
mercantilização da universidade público. Em estudo que trata das transformações
recentes e debates atuais no campo da educação superior no Brasil, Dourado,
Oliveira e Catani (2003: 20), observam que “foram implementados políticas e
mecanismos que intensificaram os processos de mercantilização da produção do
trabalho acadêmico e da gestão universitária, consubstanciando uma metamorfose
nas instituições de ensino superior (IES), particularmente na rede federal,
visando a adequá-las e ajustá-las ao paradigma gerencialista adotado na reforma
do Estado e à lógica de privatização e mercantilização dos bens e serviços
acadêmicos”. O estudo de Silva Jr. e Squissardi (2001) toma como categorias
centrais o público e o privado, e o estatal e o mercando. Nesse trabalho
encontramos, em vários momentos, a partir da detalhada e rica análise que
realizam sobre a reforma do estado e a educação superior da década de 1990, os
elementos centrais das identidades discursivas, sob o prisma da reconfiguração
das relações entre esses “espaços”, pois, como dizem os autores, há uma “orientação
reordenadora do espaço público, isto é, a mesma lógica presente no espaço do
mercado estritamente capitalista” (2001: 75), ou a “reorganização desse espaço
público, segundo a lógica do mercado, em meios a redefinição dos conceitos de
públicos e de privado” (2001: 78).
Os extratos simbolizam, de forma
significativa, a presença crescente das identidades discursivas público-estatal
e privado-mercado como macro-referências fundamentais na orientação e
estruturação discursiva do campo da produção acadêmica da educação superior no
Brasil. Obviamente que há diferenças consideráveis no emprego e conceituação
daquelas categorias, assim como de suas componente-centrais (bem público,
interesse público, função pública, direito público, cidadania, conhecimento socialmente
relevante; bem privado, educação como mercadoria, prestação de serviços,
privatização, mercantilização, conhecimento economicamente relevante, entre
outros), ou seja, os atores acadêmicos os utilizam sob orientações, objetivos e
interesses variados, como é possível verificar em tratamento objetivo,
fundamentado e baseado numa revisão ampla do tema público e privado (Silva Jr.
e Squissardi, 2001: 81-120), que busca demonstrar que “os espaços público e
privado são fluídos, mas distintos e relacionados entre si. As distinções entre
as instituições da sociedade civil estabelecer-se-ão a partir de suas
identidades e, jamais, tendo como referência somente o público ou privado.”
(2001: 101). Neste sentido, os autores demonstram que a compreensão da educação
superior no Brasil e suas transformações “somente pode ser feita no contexto da
redefinição das esferas pública e privada” (2001: 101). Muito embora os autores
tomem como referência direta a compreensão da educação superior no período do
governo FHC, tais categorias são também relevantes e pertinentes para o
entendimento e explicação da educação superior no governo Lula.
Por outro lado, um dos atores
acadêmicos que trabalha de forma a reforçar uma visão polar e antinômica das
identidades discursivas público-estatal e privado-mercado é Leher (2001, 2004).
Nos dois trabalhos aqui analisados opera uma clivagem político-ideológica
fundamental nas identidades discursivas público-estatal e privado-mercado. Essa
clivagem[3]
se repete em vários outros trabalhos acadêmicos, os quais, muitas vezes,
transformam relações e categorias históricas, portanto, singulares social e
historicamente demarcadas, em relações predominantemente ideológicas,
conjunturais. A seguir explicitaremos esse processo.
3. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DAS CAUSAS SÓCIO-HISTÓRICAS
DAS IDENTIDADES DISCURSIVAS
Cabe-nos agora a tarefa de
sistematizar algumas das causas sócio-históricas que levaram à construção, uso
e reprodução, no campo da educação superior do Brasil, daquelas identidades discursivas.
Em primeiro lugar, os usos recentes
deram-se em função das transformações, nos países centrais, dos Estados de Bem
Estar Social e do modelo keynesiano pós-1945, em função da chamada “crise
fiscal do Estado” e do modelo fordista de produção econômica, a partir
da implementação de amplo programa de reforma neoliberais, orientado pelo e
para um novo desenho de mercado, dentro dos marcos da acumulação flexível. A
redefinição do aparato, das funções, das formas de intervenção e dos princípios
e valores do Welfare State, tem implicações fundantes nas concepções,
identidades e redefinição das relações entre a esfera público-estatal e a
privada, e o Estado e o mercado passam a ser considerados como instrumentos centrais
para o desenvolvimento econômico[4].
Como as transformações neoliberais e da acumulação flexível tem lugar
primeiramente nos países centrais[5]
a partir da ascensão de Thatcher na Inglaterra e Reagan nos Estados Unidos,
portanto a partir da segunda metade da década de 1970, e que se aprofundam nos
anos 1980 nos setores educacionais e da saúde – para ficarmos nesses.
Diferentemente, o debate e as
políticas sociais no Brasil dos anos 1980 foram predominantemente marcados por
temas que indicam a reconquista e o fortalecimento dos direitos sociais e
políticos, na perspectiva da ampliação e recomposição dos serviços públicos, da
participação social e da redemocratização da sociedade e de suas instituições
sociais, entre elas, a escola e universidade. Em outras palavras, as tensões,
polaridades e antinomias entre o público e o privado não se colocavam para a
grande maioria da população, assim como não constituíam o problema
central tematizado no campo acadêmico da educação superior. A literatura
demonstra que o tratamento era mais no sentido do diagnóstico dos problemas
específicos dos setores público e privado da educação superior. Um dos
projetos importantes desse período, formulado pela comissão de notáveis, que
resultou no GERES e em Projeto de Lei, praticamente não tencionara as relações
entre o público e o privado, e o mercado era visto como espaço-fim de destino
dos egressos universitários, como em períodos históricos precedentes. O
mercado, no Brasil dos anos oitenta, no campo da educação superior, não era
tematizado como “portador de racionalidade sócio-política e agente principal do
bem-estar da república” (Chauí, 2000: 211), ou seja, ele não havia sido capacitado
para funcionar como instrumento de controle, regulação e coordenação da
educação superior (Gomes, 2003). Portanto, o mercado não é ainda a antítese do
estatal, porque historicamente, parece existir um fenômeno que possamos
denominar de identidade estado-mercado, no sentido restrito do mesmo ser
proprietário de forças produtivas, produtor de mercadorias, e empregador
considerável de força de trabalho em vários segmentos produtivos e nos serviços
públicos.
Na verdade, se esta hipótese tem
sustentação sócio-histórica, a identidade estado-mercado ocorre pelo alto nível
de regulação estatal então existente, em primeiro lugar por ser o Estado
produtor de bens e mercadorias, portanto, produtor direto de mais-valia; em
segundo lugar, porque o mercado de trabalho era altamente controlado através do
controle de preços de bens e serviços, e da regulamentação das profissões,
fenômeno esse correlacionado ao desenvolvimento da educação superior no Brasil.
A educação pública preserva então o sentido de anti-mercadoria, de bem público,
provido pelo Estado[6],
dentro dos marcos da preparação e reprodução da mercadoria força de trabalho,
necessária ao processo de acumulação capitalista. Argumentamos, então, que uma
mudança histórica poderá ser observada, que é a emergência, a partir das
políticas governamentais, como a reforma do Estado, de identidades discursivas
que polarizam o estatal e o mercado, a partir dos programas de privatização,
desregulamentação e liberalização que foram executados pelo governo FHC. Tais
iniciativas se refletem fortemente no seio das universidades púbico-estatais, e
se expressam nas preocupações e questões tratadas no campo da produção
acadêmica do ensino superior, sobretudo a partir de 1995.
Por outro lado, a privatização, no
contexto dos anos 1980, significava, sobretudo, a expansão das matrículas nas
instituições privadas, assim como o aumento do número de instituições privadas
relativamente às instituições públicas[7].
Como sabemos, as primeiras passaram, a partir dos anos 1960, a dominar as matriculas
na educação superior no Brasil, tendência que se acentua significativamente
durante o período do governo FHC, e que tende a se consolidar durante o governo
Lula[8].
Com certo exagero, mas que talvez seja útil para o nosso entendimento, pode-se
dizer que o público e o privado nos anos 1980 constituem setores relativamente
emulados, sendo a tendência dominante, já nos anos 1990, a de reestruturar e
aperfeiçoar os instrumentos de controle estatal sobre o setor e as instituições
privadas. Evidencia forte desse elemento é o Exame Nacional de Cursos.
Particularmente, no campo educacional tinha-se uma instituição mediadora, como
o Conselho Federal de Educação, entre o setor privado, enquanto setor de ensino
‘regulado’, e o Estado, enquanto portador de racionalidade político-burocrático
desprovido de capacidade regulatória qualitativa e de mecanismos indutivos do
mercado da educação superior. Registre-se, também, que as interpenetrações, a
indefinição de limites e as confusões de papéis entre o público e o privado
resultavam, sobretudo, das históricas práticas patrimoniais do Estado e das
elites políticas e econômicas, assim como das práticas clientelísticas e
corporativas então predominantes (Sorg, 2000).
As relações entre o público – ou
melhor, o poder estatal – e o (setor) privado dos anos 1990 poderiam ser
definidas como desprovidas das condições necessárias para realizar a utilidade
pública, apesar de atender mais de 60% da população estudantil em seus
cursos de graduação, e apesar de ser, sobretudo, um negócio, não era,
contudo, um mercado no sentido que vai ser imprimido a partir dos anos 1990,
pois era um mercado profundamente tosco, rudimentar.
Neste momento, é aconselhável
tomarmos emprestado uma definição de mercado, mesmo que sob uma só perspectiva,
pois poderá contribuir para a compreensão do debate. Para Celso Furtado (1983:
88),
“mercado é um conceito
amplo que abarca distintos mecanismos destinados a recolher, elaborar e transmitir informações a serem utilizadas
pelos agentes econômicos. Essas informações são diversas e apresentadas de
forma distinta conforme o agente seja um consumidor, um empresário, um
comprador de títulos etc. Mas a eficácia da decisão dependerá sempre da
qualidade e da oportunidade das informações a que tem acesso o agente. Os
mercados produzem um fluxo permanente de informações, sob a forma de
indicadores que são uma tradução sintética de milhares de dados. (...)”.
(Grifos do autor).
A presente definição de mercado ou
de mercados permite compreender que eles se diferenciam da produção. Os
mercados são constituintes dos processos de distribuição e troca, realizando
seu fim-último mediante o consumo daquilo que circula no mercado – a
mercadoria. (Marx, 1991). Como o(s) mercado(s) forma(m)-se e opera(m) através
da informação, elaboração e transmissão de informações, seus instrumentos e
funções são condicionadas historicamente, portanto, a base técnico-científica é
fundamental na remodelação do mesmo. Logo, a base técnico-científica não apenas
modificam o mercado; elas serão incorporadas nos instrumentos de ação do
estado, e passam a redefinir as relações entre o estatal e mercado, assim como
entre a esfera pública e a privado. O que observamos é que a produção acadêmica
do campo superior não revisão crítica e histórica da noção de mercado, a
utilizando na forma que as identidades discursivas público-privado e
estatal-mercado a havia cristalizado, pela “imigração de ideais” que “raramente
se faz sem dano... porque ela separa as posições culturais do sistema de
referências teóricas em relação às quais as idéias se definiram, consciente ou
inconscientemente...” (Bourdieu, 2004: 7).
Enfim, nos anos 1980 e início dos
1990, o público, o privado, o mercado e estatal, como categorias explicativas,
como práticas discursivas e espaços sociais, carregam significações
relativamente diferentes das que vão lhes aderir a partir do governo FHC. Foi
no contexto dos anos 1990, no Brasil, que serão produzidas novas significações
sobre o público, o privado, o estatal e o mercado que levarão a estruturação
das identidades discursivas público-estatal e privado-mercado, sob a
influência, por um lado, da crítica avassaladora dos representantes das teorias
neoliberais, que acolhe o mercado – num sentido especifico – como categoria
fundamental, e das políticas sociais e de reforma do Estado, e por outro lado,
das teorias, nos vários campos das ciências sociais e humanas, em especial na
produção acadêmica da educação superior, em defesa do Estado Democrático e da
“resistência do Estado-providencia” (Afonso, 2000). Essas duas posições
teóricas representam um debate político-ideológico radical no que tange ao
papel do Estado, o qual ocorre dentro dos marcos sociais, políticos e
econômicos da sociedade capitalista contemporânea. Não se questiona, por
exemplo, “a propriedade privada dos fatores de produção – terra, força de
trabalho e capital”, nem o capitalismo “como um sistema econômica no qual
decisões são dirigidas pelas forças do mercado” (Slaughter and Lislie, 1997:
9). O que se questiona, e, portanto, se quis reconfigurar, foi o papel do
Estado em relação à execução, provimento, financiamento, regulação, controle e
avaliação dos bens públicos educacionais. É partir dessa matriz que nasce
polarizações e antinomias das e em torno daquelas identidades discursivas.
Contraditoriamente, os diversos autores que analisam e
produz a crítica ou a defesa das políticas estatais e governamentais da era
FHC, no campo da educação superior, assumem e reproduz nos seus trabalhos,
implícita e explicitamente, aquelas duas posições, que passamos a denominar de marcos
referenciais macros. De forma sistemática, a produção acadêmica do campo da
educação superior, apesar da diversidade de temas abordados e de enfoques
teórico-metodológicos assumidos, recorrem a uma base explicativa comum,
previamente formulada, mas articulada e reafirmada, para imprimir significado e
coerência analítico-interpretativa à ‘realidade’ das políticas públicas para a
educação superior nos 1990. Constituem os marcos referenciais macros, as
teorias do Estado de Bem Estar Social e o neoliberalismo, articulados com a
teoria da acumulação flexível e o papel dos organismos internacionais[9].
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente trabalho, procuramos
analisar as origens e razões que levaram à construção, o uso e a reprodução, no
campo da educação superior, das identidades discursivas público-privado e
estatal-mercado, argumentando que se convencionou o emprego polar e antinômico
dos mesmos, em parte importante da produção acadêmica do campo da educação
superior. A conclusão a que chegamos é que no terreno das relações entre
aquelas componentes e a universidade ou a educação superior, se apresentam
desafios consideráveis aos nossos fundamentos analítico-interpretativos, ou
termos mais gerais, às nossas bases teóricas. Por isso, se faz necessário o
retorno ao trabalho prévio de revisão e teorização destas categorias, para
construirmos, no campo da educação superior, um entendimento mais profundo,
consistente e fundamentado, e assim podermos avançar em relação às proposições
teóricas bipolares. Isto porque o fenômeno da educação superior, complexo e
heterogêneo em si mesmo, deve ser compreendido a partir de uma perspectiva que
leve em consideração as causalidades históricas e as causalidades sociais. Com
isso queremos reafirmar que as significações do público, privado, mercado e
estado, carregam significados que são social e historicamente construídos, não
podendo compreendê-las e explicá-las, sem procurarmos interrogá-las à luz dos
contextos sócio-históricos, a partir dos quais ganham relevância as políticas
públicas para a educação superior, que constituem nosso objeto central de
investigação. Em outras palavras, a questão que nos colocamos e tentamos
responder é: a construção da identidade discursiva privado-mercado resiste à
verificação histórica e sociológica quando analisada em suas matrizes gerais?
Da mesma forma, essa identidade discursiva, empregada no campo da pesquisa
educacional e da educação superior, resiste a crítica sociológica e histórica?
Por outro lado, tão profundamente instituído no campo acadêmico da política da
educação superior figura a identidade discursiva público-estatal, que tem sido
constituída como significação objetiva e imaginária em oposição à identidade
discursiva privado-mercado. Essa também deve ser submetida ao inventário
sócio-histórico, porque certamente não resistira à verificação crítica
sócio-histórica. A resposta as questões acima parece ser negativa, mas devemos
procurar compreendê-los, caracterizá-las e fundamentá-las para além das
hipóteses e considerações iniciais que desenvolvemos no presente texto.
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Crítica da Economia Política. São Paulo: Nova Cultural. (Coleção Os
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HopkinsUniversity Press.
SORJ, Bernardo. (2000). A Nova Sociedade Brasileira. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
[1]
A pesquisa divide-se em três partes: a primeira refere-se à análise da produção
acadêmica da educação superior de autores/atores acadêmicos que se agrupam em
torno de proposições/posições criticas em relação às políticas públicas para a
educação superior; a segunda é dedicada a analise da produção acadêmica de
autores que participam/ram da formulação e coordenação de políticas e mantinham
ou mantém uma posição de “alinhamento” com as mesmas; e a terceira compreenderá
a análise dos documentos e legislação concernentes às políticas para a educação
superior nos governos FHC e Lula. No presente trabalho, reunimos algumas
considerações analítico-interpretativas referente à primeira parte da pesquisa.
[2] O ex-ministro da Educação, Tarso Genro, e o atual
ministro Fernando Haddad utilizam a expressão interesse público, função
pública, ou missão de natureza pública, querendo com isso institui prática
discursiva nova relativamente ao público e ao privado, ou seja, como discurso
oficial das políticas públicas que encarna, o emprego de tais expressões tem
por objetivo ‘superar’ as identidades discursivas polares, uma vez que a
finalidade pública deve ser realizada em qualquer instituição, seja ela
pública, privada com fins lucrativos, comunitária, filantrópica ou
não-estatal, não necessariamente na linha do que Bresser Pereira (1998)
denomina de “público não-estatal”. Lembremos que bem público significa bem
comum, e que bem ou bens compreende também um sentido econômico.
[3]
O significado de clivagem que empregamos é uma adaptação do termo clivagem
do ego, desenvolvido por S. Freud, que o utiliza para “designar um fenômeno
muito particular que ele vê operar sobretudo no fetichismo e nas psicoses: a
coexistência, no seio do ego, de duas atitudes para com a realidade exterior na
medida em que esta vem contrariar uma exigência pulsional: uma tem em conta a
realidade, a outra nega a realidade em causa e coloca em seu lugar um produto
do desejo.” (Lapanche e Pontalis, 1988: 101).
[4]
Para uma leitura das transformações entre governo e educação superior na Europa
Ocidental, ver Neave and Van Vught (1991) e Goedegebuure (1994). Em relação à
crise do Welfare State e ao neoliberalismo, entre a vasta literatura
acumulada, ver Mishra (1984), Sader e Gentili, (1999), Chauí (2000), Anderson
(1995), Gentili (1998), Silva Jr e Squissard (2001).
[5]
Não podemos esquecer o fenômeno no Chile a partir da década de 1970, amplamente
referida na literatura do campo da educação superior.
[6]
Aliás, bastante restrito, demasiadamente fechado e elitista, o acesso e
usufruto da educação, nesse período.
[7]
Cunha (2000: 41), por exemplo, entende que: “A privatização e a fragmentação
institucional são suas características principais. Cerca de 60% dos estudantes
de graduação estão matriculados em instituições privadas; (...)”. O mesmo
sentido de privatização é encontrado em Trindade (2001: 26-32).
[8] É relevante destacar que as políticas de expansão dos
governos FHC e Lula são demasiadamente diferentes, muito embora os resultados
observados sejam tomados como uma linha continua entre os dois governos, por
manter a tendência de ampliar a privatização da oferta. No entanto, divergem
radicalmente quando analisada a partir da ação estatal, porque o crescimento é
resultado da isenção fiscal que poderia ser destinados a complementar o “fundo
público” (Oliveira, 1998), claro, através da regulamentação que, segundo o
ministro Haddad, são “isenções fiscais constitucionais concedidas às instituições
privadas, permitindo a concessão de 112 mil bolsas de estudos no âmbito do
Prouni e a ampliação do Fies.” (Folha de São
Paulo, 25/09/2005). No governo
precedente a expansão do setor privado ocorria tão-somente mediante relações
mercantis entre agentes econômicos, cuja mercadoria é a educação.
[9]
Anderson (1995), Oliveira (1998), Chauí (2000), Friedman (1982), Hayek (1997),
Bresser Pereira (1998) e vários ‘documentos’ do Banco Mundial, entre eles se
destaca La enseñanza superior: as lecciones derivados de la experiência,
Washington, 1994, são as produções que, lidas e relidas, sintetizadas e
interpretadas, ouvidas, anotadas e incorporadas, constituem parte relevante da
formulação dos marcos referenciais macros, presente na produção
acadêmico do campo da educação superior.
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