Autoria:
Menga
Lüdke - Departamento de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro.
Giseli
Barreto da Cruz - Doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
RESUMO
O
objetivo deste trabalho é discutir a relação entre a pesquisa e o professor de
educação básica a partir de dados de um programa integrado de investigação
sobre o tema. A articulação entre ensino e pesquisa na formação e no trabalho
do professor da educação básica é algo que há algum tempo tem sido abordado na
literatura acadêmica, mas pouco se sabe sobre o seu alcance entre os professores
desse nível de ensino. Neste texto apresentamos a proposta e alguns dos
resultados de nosso estudo, considerando as três etapas que o constituem: 1. a visão de professores da
educação básica sobre a pesquisa e sua preparação para exercê-la, bem como as
condições e os estímulos para a sua realização; 2. a opinião de professores da
universidade responsáveis pela formação desses professores sobre a importância,
a necessidade e a viabilidade da pesquisa, tanto na formação quanto no trabalho
do futuro professor, abordando, ainda, os dispositivos empregados pela sua
universidade na formação dos licenciandos como futuros pesquisadores; 3. a proposta de investigar a
posição dos que decidem sobre pesquisa, uma etapa do estudo em pleno andamento,
buscando divisar os elementos levados em conta por essas pessoas. Como
conclusão, são apresentadas algumas reflexões acerca da situação atual da
pesquisa em educação e o desafio da formação de professores, evidenciando a
importância de aproximar a pesquisa em educação das duas realidades que lhe
dizem respeito: a da universidade e a da escola de educação básica.
Palavras-chave: EDUCAÇÃO BÁSICA – ENSINO
SUPERIOR – PESQUISA EDUCACIONAL – PROFESSOR
INTRODUÇÃO
A
concepção do professor como pesquisador, a possibilidade de que ele desenvolva
a prática da pesquisa no trabalho docente, a preparação para essa prática são
questões amplamente discutidas hoje pela comunidade acadêmica, ao lado e, por
vezes, em conjunto com as idéias de "professor reflexivo", muito
difundidas pela obra de Schön (1983), e a de saber docente, introduzida entre
nós por um artigo de Tardif, Lessard e Lahaye, de 1991. Os debates em torno
dessas e de outras idéias a elas correlatas têm se tornado cada vez mais
intensos, e nos interessam de modo especial, pois estamos desenvolvendo uma
investigação a seu respeito. Antes de apresentarmos os andamentos de nossa
pesquisa, gostaríamos de comentar alguns pontos críticos particularmente
instigantes para o trabalho, suscitados em artigo de Duarte. Eles estão
sumariados no trecho a seguir:
De
pouco ou nada servirá mantermos a formação de professores nas universidades, se
o conteúdo dessa formação for maciçamente reduzido ao exercício de uma reflexão
sobre os saberes profissionais, de caráter tácito, pessoal, particularizado,
subjetivo etc. De pouco ou nada adiantará defendermos a necessidade de os
formadores de professores serem pesquisadores em educação, se as pesquisas em
educação se renderem ao "recuo da teoria". (2003, p.620)
O
primeiro ponto refere-se ao risco que corre hoje a formação de futuros
professores na universidade, se os cursos ali oferecidos se concentrarem
predominantemente no exercício de uma reflexão de caráter pessoal, particular,
sobre a própria prática do estudante, futuro professor, num esforço subjetivo e
isolado do contexto em que se dará essa prática. Já tivemos ocasião de comentar
(Lüdke, 2001, 2001a, 2001b) os possíveis efeitos de uma ampliação desmesurada
do conceito de reflexão, tal como proposto por Schön (1983), em seu esforço de
neutralizar o predomínio crescente da racionalidade técnica, na compreensão do
trabalho e da formação de profissionais. Embora não tenha focalizado os
professores em sua pesquisa publicada em 1983, esta acabou tendo uma imensa
repercussão no campo da educação, e recebeu do autor atenção especial
posteriormente (Schön, 1992). A idéia de reflexão sobre a ação, seja durante o
seu desenrolar, seja após sua conclusão e representando um esforço de abranger
não apenas a ação concluída, mas também a reflexão sobre ela, constitui um
reconhecimento explícito do que implicitamente já fazem os professores, ao se
perguntarem por que algo deu certo ou errado em seu trabalho docente. A
novidade (de Schön) é levantar o alerta sobre o interesse de se manter essa
pergunta durante o desenrolar do trabalho, e também, por certo, em seguida a
seu término. Com isto se assegura ao professor o acompanhamento do fio da
meada, que vai desenrolando pelo seu trabalho e que hoje alguns estudiosos
procuram captar e entender, por meio de investigações do campo da ergonomia (Durand,
apud Therrien, Loiola, 2001). Não há dúvidas sobre o interesse de ressaltar a
importância da reflexão como parte integrante fundamental do trabalho do
professor. Entretanto, convertê-la em eixo central de cursos de formação de
futuros professores constitui um risco a ser prontamente evitado, sob pena de
sacrificar outros aspectos também importantes.
Um
risco talvez bem mais próximo da atuação do professor é a conversão da
reflexão, um componente natural de seu trabalho, em um esforço autocentrado exclusivamente
sobre sua própria experiência individual, isolada das condições e fatores que
compõem a situação na qual ele e seus alunos estão envolvidos. Não apenas a
situação imediata que os cerca na escola, como, sobretudo, a situação geral de
sua comunidade, sua região, seu país e de seu tempo. E para dar conta disso é
preciso que, em sua formação, o professor receba os fundamentos oferecidos pelo
esforço de construção teórica desenvolvido pelas disciplinas que estudam a
educação, como a Sociologia, a Psicologia, a História, a Antropologia e de modo
especial a Filosofia. Só assim, armado com esses recursos, o futuro professor
vai poder enfrentar os desafios decorrentes de sua incumbência, ou de seu
mandato, como herdeiro, mediador, intérprete e crítico, na expressão de
Mellouki e Gauthier (2004). E aqui tocamos no outro ponto crítico sensível,
mencionado no trecho citado: o "recuo da teoria", por parte da
pesquisa em educação. Nesse caso existe um risco sério há muito tempo rondando
nossa produção dita acadêmica em educação. Não se trata de um problema
registrado recentemente com a entrada do papel da reflexão nas discussões sobre
formação de professores. Ele está relacionado com fatores bem mais básicos,
entre eles a própria natureza do campo educacional, sem definição clara de seu
recorte epistemológico, como foco de confluência da contribuição de várias
disciplinas. A questão é tão grave, a ponto de levar pesquisadores experientes,
profundos conhecedores da realidade educacional de seu país, a afirmarem que,
para se tornar um pesquisador, o futuro professor deveria especializar-se em
uma das ciências que servem o campo da educação. Em artigo sucinto, mas muito
incisivo, Isambert-Jamati (1992) aponta a importância, para o pesquisador em
educação, de dispor de uma base sólida em uma das disciplinas científicas a ela
confluentes, para fundamentar com segurança suas análises teóricas.
Outro
ponto agravante desse risco se liga ao grande desenvolvimento do apelo à
abordagem qualitativa na pesquisa em educação. O inegável aporte trazido por
essa abordagem para melhor aproximação dos objetos de estudo próprios do campo
educacional, devido à sua grande complexidade, dificilmente contemplada
satisfatoriamente pelas metodologias quantitativas, não impede que reconheçamos
certos excessos cometidos por inúmeros seguidores daquele apelo. De modo
especial, pesquisadores iniciantes sentiram-se atraídos pelas aparentes
facilidades do trabalho metodológico com a pesquisa qualitativa, em grande
parte devido ao desconhecimento dos recursos oferecidos pelos métodos
quantitativos, insubstituíveis em determinados problemas de pesquisa. Hoje já
começamos a reconhecer e a tentar reparar os males ocasionados por esse
desconhecimento, procurando oferecer formação sobre técnicas e conceitos
próprios da investigação quantitativa, em nossos cursos de graduação e de
mestrado em educação. Mas ainda podemos registrar grande quantidade de
"pesquisas" que se limitam a transcrever dados obtidos por
entrevistas, ou narrativas de professores sobre suas carreiras docentes ou
trajetórias de vida, ou por observação de seu trabalho em sala de aula, sem
cuidar da análise desses dados à luz de teorias que possam ajudar a esclarecer
o problema investigado, estimulando o pesquisador a buscar soluções próprias
para cada caso, com base em recursos disponíveis no acervo de análises teóricas
da área e dos que o próprio pesquisador irá propor. Para tanto é necessário,
porém, que ele se apóie nas pistas fornecidas pelos estudiosos que já se
debruçaram sobre os mesmos problemas e impulsionam a criatividade dos novos
pesquisadores. As teorias funcionam como impulsos provocadores de novas
percepções a serem exploradas e expandidas pelos talentos dos investigadores
que se seguem.
A
supervalorização dos aspectos ligados à experiência, ao trabalho, à prática do
professor, de certa forma favorecida pelo desenvolvimento das idéias de
reflexão e de saber docente, não pode representar um empecilho, ou mesmo uma
dificuldade à atuação indispensável do componente teórico em todo trabalho de
pesquisa. Pode-se compreender que tenha ocorrido um aparente desequilíbrio nas
argumentações a respeito desses temas, num esforço de resgatar a importância
devida à dimensão da prática, considerada por alguns autores como subestimada
em relação à teoria nas discussões sobre a formação e o trabalho do professor.
Entendemos, porém, que esse esforço não justifica, ou mesmo representa, recuo
algum relativo ao papel desempenhado pela teoria na cena da pesquisa, mas
apenas reivindica um restabelecimento de sua parceria em relação ao da prática.
Nesse sentido, insistimos sobre a centralidade da formação teórica do
professor, tanto no período chamado de pré-serviço, quanto no de formação
continuada ao longo de sua carreira. Um equilíbrio, ainda não plenamente
encontrado em nossos atuais cursos de formação, permitiria assegurar ao futuro
professor o domínio dos conceitos-chave, dentro de quadros teóricos
abrangentes, capazes de ajudá-lo a equacionar os problemas da nossa realidade
educacional, que iriam se revelando no lado prático de sua formação. Ele sairia
dessa preparação contando com recursos indispensáveis para iniciar seu trabalho
docente e o próprio desenvolvimento profissional, inclusive como pesquisador.
Nossos
cursos de formação de professores têm sofrido as conseqüências de um defeito
congênito de sua constituição: a separação entre teoria e prática no esforço de
formação, colocando, em geral, em posição precedente a teoria, vindo a prática
sempre depois, por meio de estágios de duração insuficiente e, sobretudo, de
concepção precária. Não é possível nos determos mais sobre esse ponto, que
exige, porém, atenção urgente e cuidadosa, pois suas conseqüências atingem
vários aspectos, inclusive a questão da construção do saber docente, hoje tão discutida
por autores que se preocupam exatamente com a imprópria hierarquização entre
teoria e prática. Superar essa hierarquia poderá contribuir para esclarecer a
complicada questão.
Neste
texto1,
vamos apresentar a proposta e alguns dos resultados de um estudo que temos
desenvolvido desde 1998, sobre a complexa relação entre o professor da educação
básica e a prática de pesquisa. Estamos na terceira etapa do estudo, em pleno
desenvolvimento, e já publicamos alguns trabalhos que divulgaram informações
sobre as etapas anteriores. Aqui pretendemos retomar e aprofundar alguns dos
pontos que consideramos principais, procurando articulá-los com a discussão
intensa que tem sido desenvolvida recentemente sobre o tema, inclusive pelos
autores que serão mencionados nesta seção.
A
PESQUISA E O PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BÁSICA
A
possível articulação entre ensino e pesquisa no trabalho do professor da educação
básica é algo que há algum tempo tem merecido atenção de nossa parte e de
outros colegas que se dedicam ao seu estudo. Desde a década de 90 o tema
"professor pesquisador" tem ganhado espaço no cenário de discussão
acadêmica, sobretudo, como já mencionamos, com a repercussão que teve entre nós
o trabalho de D. Schön (1983) sobre o reflective practitioner.
As
idéias de Schön, inicialmente, não abordaram diretamente o professor, mas ao
centrarem-se na valorização da reflexão na experiência, com base em Dewey, e do
conhecimento tácito, com base em Polanyi, acabaram atraindo uma imensa atenção
no meio docente e impulsionando uma gama variada de produções sobre a
importância de o professor refletir sobre a sua prática, antes, durante e
depois dela. Contrapondo-se à racionalidade técnica, Schön defende um tipo de
epistemologia da prática, em que o sujeito posiciona-se em uma atitude de
análise, produção e criação a respeito da sua ação ao enfrentar situações
desafiadoras.
Tal
perspectiva, aliada àquela anteriormente proposta por L. Stenhouse (1975),
baseada no princípio de que o professor precisa assumir-se como pesquisador da
própria prática, encaminhando crítica e sistematicamente sua atividade para
identificar os eixos estruturantes de cada situação de ensino, tem impulsionado
uma série de trabalhos voltados para a idéia de um professor mais autônomo.
Para Stenhouse, a pesquisa deveria ser a base do ensino dos professores, tendo
como foco central o currículo, uma vez que é por seu intermédio que se transmite
o conhecimento na escola. De acordo com o que propunha Stenhouse, as reformas
precisariam incluir em seu interior o desenvolvimento profissional dos
professores como pesquisadores de suas próprias práticas, que fazem de suas
salas de aula típicos laboratórios de ensino.
O
alcance desses pensamentos entre nós, bem como os de várias outros autores
(Elliott, 1989; Zeichner, 1992; Giroux, 1990; Contreras, 1997; Perrenoud,
1996), tem valorizado cada vez mais a perspectiva da pesquisa na formação e na
atuação do professor. Essa perspectiva é apontada por diversos autores, e mesmo
pela legislação, como algo importante para o preparo e o trabalho do professor
e por isso deve ser introduzida na formação inicial e continuada dos
professores da educação básica.
Pouco
se sabe entre nós, todavia, sobre o que ocorre de fato a esse respeito entre os
professores desse nível de ensino. Como concebem eles o papel da pesquisa em
suas escolas? Que formação receberam e de que condições dispõem para
realizá-la? Que tipo de pesquisas de fato realizam? Onde as divulgam? É
possível e viável ao professor investigar a sua própria prática? Essas e outras
questões têm-nos motivado à concepção e implementação de um programa integrado
de pesquisa, que busca uma possível articulação entre pesquisa e ensino no
trabalho do professor.
A
motivação inicial para a investigação sobre o professor da escola básica e a
pesquisa surgiu quando do desenvolvimento de uma pesquisa voltada para o
processo de socialização profissional de professores (Lüdke, 1998). Uma de suas
constatações instigou-nos sobremaneira: a prática de pesquisa e mesmo a
formação para ela não foram apontadas como importantes por professores
formadores de futuros docentes, em cursos de ensino médio e de licenciatura
para o magistério. Os professores desses cursos, nossos entrevistados, de modo
geral não consideraram o componente pesquisa entre os apontados como
necessários para a formação do futuro professor. A tal ponto surpreendeu-nos
essa ausência, que decidimos propor uma investigação a respeito.
A
primeira etapa da investigação voltou-se para o campo de trabalho do professor
da educação básica. Como é vista sua relação com a pesquisa? Interessava-nos
saber se no cotidiano das escolas haveria professores exercendo atividades específicas
de pesquisa, paralelamente às suas atividades docentes.
Adotamos
como campo de trabalho quatro estabelecimentos de ensino da rede pública da
educação básica, da cidade do Rio de Janeiro, considerados privilegiados, por
serem dotados de recursos básicos para a realização de atividades de pesquisa,
tais como, complementação salarial, carga horária específica e infra-estrutura
física. As escolas foram escolhidas com base em critérios que nos assegurassem
as condições da prática de pesquisa entre os professores. Por isso,
selecionamos dois colégios de aplicação, ligados a universidades públicas, uma
escola com longa história e um regime de contratação próprio, ligado ao sistema
federal e uma outra de criação recente, concebida segundo um projeto de inovação
pedagógica, ligada a uma grande instituição de pesquisa na área da saúde. Elas
contam com características de certa forma especiais, em termos de instalações e
regime de contratação de pessoal, constituindo campos privilegiados para a
busca que empreendíamos: contextos que favorecem de alguma forma o exercício da
pesquisa, em que seria esta uma das possíveis atividades do professor.
Interessados
em revelar a pesquisa dos docentes da escola básica fomos a campo e, com base
na visita aos quatro estabelecimentos mencionados, no estudo dos documentos
recolhidos e, principalmente, nas entrevistas realizadas, conseguimos reunir um
conjunto valioso de informações sobre o alcance da prática de pesquisa na
escola básica. Para as entrevistas foram selecionados professores das várias
áreas do currículo que, segundo indicação dos coordenadores, provavelmente
desenvolviam atividades de pesquisa. Dessa forma, alcançamos cerca de 70
professores, cujas entrevistas ensejaram interessantes pistas para análise.
O
trabalho investigativo revelou-nos a visão desses professores sobre a pesquisa
e sua preparação para exercê-la, bem como as condições e os estímulos para a
sua realização. Para tanto, partimos de alguns pontos básicos, assumidos como
questões-chave para orientar as entrevistas com os professores. Foram
determinantes para o encaminhamento do estudo questionamentos sobre: o tipo de
pesquisa feito nas instituições, a concepção de pesquisa que embasa as
atividades dos entrevistados, as condições, o apoio e a recompensa para a
pesquisa, bem como a formação para a pesquisa do professor entrevistado e o
programa de formação continuada que sustenta o trabalho de pesquisa desse
professor.
Um
dos objetivos do estudo foi trazer à tona as concepções que os professores têm de
pesquisa e analisar os trabalhos que realizam sob essa designação. Cerca de
metade dos professores entrevistados declara fazer pesquisa. Muitos voltados
para pesquisas pessoais, ligadas aos seus cursos de pós-graduação; outros
participando de associações científicas, realizando pesquisa como atividade
integrada ao trabalho docente ou como atividade paralela ao seu trabalho na
escola; e alguns desenvolvendo pesquisa em equipe, geralmente voltada para a
produção de material didático.
Apesar
das condições favoráveis nas escolas estudadas, nem todos os professores
entrevistados declararam "estar fazendo pesquisa", e isso parece de
certa forma surpreendente, uma vez que a pesquisa constitui parte da obrigação
docente, com carga horária prevista e algum estímulo financeiro em pelo menos
três das escolas investigadas.
De
modo geral, há uma certa flexibilidade no controle das atividades de pesquisa
pelo professor, por parte das instituições. Desde o próprio projeto de
pesquisa, até o seu relatório final, ou algum outro documento que possa dar
conta de seu desenvolvimento, não são devidamente registrados, classificados e
disponibilizados para consultas vindas do exterior da escola ou mesmo para os
colegas que nela trabalham.
É
oportuno lembrar a distinção proposta Beillerot (1991) entre "estar em
pesquisa, fazer pesquisa e ser pesquisador". O fato de participar de um
trabalho de pesquisa pode permitir a uma pessoa sentir-se ligada a essa
atividade, e declarar-se como tal. Já a expressão "fazer pesquisa"
indica uma responsabilidade maior sobre essa atividade, que se for realizada
com regularidade e autonomia pode então conduzir ao status de
pesquisador, com a distinção e o reconhecimento correspondentes, sobretudo na
academia. Nossos professores encontram-se, em geral, numa situação aproximada à
de "estar em pesquisa", indicada de um modo bastante amplo por um
"projeto", nem sempre identificável como projeto de pesquisa. De modo
geral, o estudo revela um número razoável de trabalhos mais próximos do
conceito corrente de pesquisa, quando seus autores são professores ligados a
programas de pós-graduação, de mestrado ou doutorado, ou a grupos de pesquisa
vinculados a universidades e centros de pesquisa.
Uma
outra importante constatação do estudo reside na ambigüidade que cerca o
conceito de pesquisa. Mergulhados nos problemas do dia-a-dia das escolas,
nossos entrevistados percebem que para enfrentá-los não é possível, nem
conveniente, seguir os passos sistematizados pelo modelo acadêmico, embora
reconheçam a sua "superioridade".
Como
já tivemos oportunidade de comentar (Lüdke, 2001a), a dificuldade diante de um
conceito não consensual de pesquisa por vezes ocasiona distorções que acabam
limitando a própria concepção de pesquisa. Um exemplo disso reside na relação
entre reflexão e pesquisa. A reflexão na e sobre a ação é uma estratégia que
pode servir para os professores problematizarem, analisarem, criticarem e
compreenderem suas práticas, produzindo significado e conhecimento que
direcionam para o processo de transformação das práticas escolares. Todavia,
reflexão não é sinônimo de pesquisa e o professor que reflete sobre a sua
prática pode produzir conhecimento sem, necessariamente, ser um pesquisador.
Quando ele avança, indo ainda além da reflexão, do ato de debruçar-se outra vez
para entender o fenômeno, encurta a distância que o separa do trabalho de
pesquisar, que apresenta, entretanto, outras exigências, entre as quais a
análise à luz da teoria.
Outro
eixo de análise do estudo refere-se às condições encontradas nas escolas para o
desenvolvimento das atividades esperadas do professor pesquisador. Foi possível
constatar que as quatro escolas têm um incentivo financeiro à titulação, o que,
de alguma forma, explica o número de docentes com curso de mestrado e doutorado.
Uma dessas escolas, além desse incentivo financeiro à titulação, oferece
complementação salarial aos contratados que desenvolvem projetos de pesquisa. A
carga horária dos docentes varia muito. Os dados indicaram que os professores
com menor número de aulas semanais e maior carga horária contratada exercem
pesquisa com mais regularidade. De qualquer forma, as quatro escolas, apesar de
apresentar algumas possibilidades de tempo para pesquisa, não contam com
espaços suficientemente adequados para as atividades dessa natureza. Apenas uma
conta com melhores espaços e recursos.
Reside
nesse ponto um aspecto de extrema importância para a pesquisa por parte do
professor. Para que o seu exercício na educação básica deixe de ser algo
distanciado da realidade escolar é importante que seja assumido como atividade
orgânica da escola, contando com fatores como contrato de trabalho, tempos para
a pesquisa, apoio financeiro e infra-estrutura física para a realização das
atividades de investigação.
Outro
aspecto focalizado pelo estudo refere-se à formação para a pesquisa dos
professores da escola básica. Pelo relato de 48 dos 70 entrevistados, foi
possível identificar um ressentimento em relação à ausência de qualquer indício
de formação para a pesquisa nos cursos de graduação. Ainda assim, a
contribuição da universidade, com seus cursos de graduação e pós-graduação,
mais as experiências acumuladas ao longo da vida e da carreira docente, foram
apontadas por vários deles como as principais instâncias de preparação para a
pesquisa. O reconhecimento dessa importância não nega, entretanto, os limites
da preparação hoje oferecida pela universidade. Vários sinalizaram a ausência
de disciplinas específicas sobre o assunto e a falta de possibilidade de
participação em programas de iniciação científica.
Por
conta dos limites da formação vivenciada e das precárias condições de trabalho
do professor, em geral, a pesquisa que poderia e deveria ser desenvolvida por
ele acaba sendo também muito reduzida. Seria muito bom que a relação do professor
com a pesquisa não se restringisse apenas ao papel de fornecer dados que vão
contribuir para o trabalho de outros investigadores, mas fosse acrescida da
investigação crítica relativa aos problemas da própria prática profissional.
Diante do quadro esboçado, a questão é: como levar professores, tais como os
entrevistados, a assumirem sua responsabilidade e sua capacidade para fazer
pesquisa, se a própria representação de pesquisa que os orienta inibe-os,
impede-os de se proporem como tais, como dizem alguns pesquisadores franceses?
(Fleury et al., 1994). Em outras palavras, a formação para a pesquisa tal como
acontece, quando acontece, tende a gerar nos professores representações sobre a
pesquisa impregnadas pela conotação acadêmica, não deixando muito espaço, nem
estofo, para o desenvolvimento de concepções paralelas mais amplas, que
permitam abrigar o trabalho voltado para questões diárias das escolas, sem
abrir mão, entretanto, dos cuidados que devem nortear toda forma de pesquisa.
A
PESQUISA E OS FORMADORES DE PROFESSORES
Como
vimos, entre as constatações do estudo, destacou-se a visão de nossos
entrevistados sobre a precária formação que receberam para o seu
desenvolvimento como pesquisadores. Esse dado provocou-nos a interrogação sobre
como se dá, ou deveria dar-se, a formação do futuro professor para a prática de
pesquisa, não apenas nos cursos de mestrado e doutorado, mas nos cursos em que
todos eles se preparam, os de licenciatura. Como seus formadores, professores
desses cursos, vêem essa formação, e como planejam torná-la efetiva e adequada
às condições de trabalho que seu aluno, futuro professor, vai enfrentar nas
escolas da rede pública?
Nosso
trabalho procurou cobrir a distância em geral existente entre as discussões
teóricas das grandes questões sobre formação de professores, feitas
acaloradamente no âmbito da universidade e de seus pesquisadores, e o que se
passa na realidade vivida pelos profissionais encarregados de levar a cabo as
tarefas relativas a essa formação. São os professores dos cursos de
licenciatura que devem se desincumbir das espinhosas responsabilidades
envolvidas nesse esforço. Sobre eles recaem repercussões dos problemas advindos
das novas propostas de legislação, das disputas internas nas instituições
formadoras, dos confrontos típicos entre disciplinas de conteúdos específicos e
conteúdos pedagógicos, da clássica falta de definição adequada entre formação
teórica e prática, entre outros. Nosso estudo procurou, assim, focalizar a
visão desses profissionais formadores, buscando saber como eles vêem os
problemas principais em seu trabalho de preparação do futuro professor como
pesquisador e como eles mesmos, e seus colegas, têm enfrentado esses problemas.
Para
tanto, foram entrevistados professores dos cursos de licenciatura das duas
universidades públicas às quais estavam ligadas duas escolas básicas do estudo
anterior. Decidimos escolher alguns dos cursos responsáveis pela formação de
professores para as matérias fundamentais do currículo da educação básica.
Assim, foram selecionados os cursos que formam professores de Matemática,
Português (Letras), Geografia, História, Ciências e Educação Física, além das
disciplinas pedagógicas, que entram também na formação dos futuros docentes
(Fundamentos da Educação e Prática de Ensino). A partir de contatos iniciais
com os coordenadores, chegamos aos professores que gostaríamos de contemplar:
professores das disciplinas básicas, das disciplinas específicas para a
licenciatura e das disciplinas pedagógicas, particularmente envolvidos com as
questões da pesquisa e da formação de professores.
Foram
efetuadas 44 entrevistas com esses professores e, se considerarmos também as
entrevistas para teste do roteiro (que foram muito valiosas), chegamos a 50.
Elas seguiram um roteiro bem estruturado, embora flexível, que cobria quatro
eixos básicos: o primeiro sobre informações relativas ao próprio entrevistado,
como sua formação, experiência de trabalho e de pesquisa; o segundo focalizando
as questões fundamentais do estudo, ou seja, a importância, a necessidade e a
viabilidade da pesquisa, tanto na formação quanto no trabalho do futuro
professor; o terceiro, focalizando os recursos e dispositivos empregados pela
sua universidade na formação dos licenciandos como futuros pesquisadores;
finalmente, no quarto eixo, perguntamos sobre a concepção de pesquisa do
entrevistado e sua atividade de pesquisa atual.
Os
cursos de licenciatura têm sido objeto de intensos debates no cenário
educacional, tendo em vista as limitações que cercam sua estruturação. Inúmeros
estudos e pesquisas sinalizam os problemas da área (Candau et al., 1988; Lüdke,
1994). Uma crítica bastante recorrente é a que se refere à estrutura 3+1, que
reforça o predomínio da formação dos conteúdos em relação à formação
pedagógica, provocando a separação entre as duas dimensões e, geralmente,
considerando a licenciatura como um apêndice do bacharelado. Essa dinâmica
revela sinais do modelo da racionalidade técnica, predominante na organização
dos currículos de formação de professores. Sob o ponto de vista dessa
racionalidade, calcada na separação entre teoria e prática e na
supervalorização da área do conhecimento específico que se vai ensinar, a
solução para os problemas que perpassam a ação docente está posta pela teoria,
bastando, simplesmente, a sua aplicação. O currículo dos cursos de formação
organizados nessa perspectiva apresenta, geralmente, uma ciência básica, uma
ciência aplicada e, finalmente, um espaço de ensino prático, no qual se espera
que os alunos aprendam a aplicar o conhecimento adquirido aos problemas da
prática cotidiana. A prática pedagógica, no entanto, é marcada por uma grande
complexidade, o que exige mais do que soluções prontas e produzidas fora do
contexto.
As
licenciaturas oferecidas pelas instituições investigadas inserem-se no contexto
descrito, apesar da posição crítica de nossos entrevistados a respeito da
polarização estabelecida entre conteúdo específico e sua aplicação. As duas
universidades investigadas são públicas, de grande porte e bastante conceituadas,
mantendo, cada uma, um colégio de aplicação. Apresentam, portanto, ampla
experiência na formação de professores, condição decisiva para a realização da
pesquisa em relato.
Todavia,
as duas instituições se diferenciam em alguns aspectos. A universidade mais
antiga reúne uma clara tradição de pesquisa. Seu contexto institucional é
fortemente marcado pela produção de conhecimento científico, destacando-se nos
cenários nacional e internacional. A Universidade mais nova, no entanto, não
conta com semelhante tradição. Contudo, no que se refere aos cursos de
licenciatura, nossas constatações apontam que a tradição de pesquisa da
universidade mais experiente se circunscreve, predominantemente, aos cursos de
bacharelado, pouco alcançando os alunos de licenciatura. O que não acontece com
a mais nova, cuja experiência com a pesquisa tem evoluído e se estendido a
todos os seus cursos, inclusive os de licenciatura. Temos diante de nós duas
grandes instituições formadoras de professores para as diferentes áreas do ensino.
Entretanto, aquela que mais experiência reúne em relação à prática de pesquisa,
aparentemente não é a que mais contribuições oferece à formação do futuro
professor para a pesquisa.
Considerando
o primeiro eixo do roteiro, os dados sinalizam que nossos entrevistados nem
sempre são possuidores do título de doutor, embora vários estejam se preparando
para chegar lá. Todos são portadores do título de mestre, vários fizeram
estudos no exterior. Cerca de três quartos se formaram em cursos de
licenciatura, portanto, para um bom número deles, cerca de um quarto, não houve
oportunidade de sentirem pessoalmente em sua formação os problemas que hoje
enfrentam na preparação de futuros professores. O mesmo se diga de boa parte
deles (cerca de um quarto), que declara não ter tido experiência docente em
estabelecimentos de educação básica. Nem todos tiveram, segundo declararam,
experiência de pesquisa em seus cursos de graduação, embora essa situação
apresente diferenças entre as diversas áreas.
As
questões focalizadas no segundo eixo do roteiro, sobre a importância, a
necessidade e a viabilidade da pesquisa na formação e no trabalho do professor,
foram respondidas por nossos entrevistados de maneira bastante uniforme. Quase
todos declararam que a pesquisa é muito importante e necessária, tanto nas
instituições de preparação, quanto nas de exercício do magistério. Uma análise
mais detalhada das respostas mostra, entretanto, certas nuanças nas afirmações
recolhidas, revelando posições dúbias a respeito do próprio conceito ou do tipo
de pesquisa mais apropriado ao magistério na escola básica. Alguns chegaram até
a estabelecer diferenças claras entre a pesquisa "científica", feita
com rigor e precisão de laboratório na universidade, e aquela possível de ser
realizada pelo professor em sua escola, especialmente na rede pública. Com
relação à viabilidade da pesquisa aí realizada, as respostas dos nossos
entrevistados são ainda mais céticas, talvez com base na percepção que têm da
vida na escola de educação básica, pela sua própria experiência docente, e
também pelo do contato com os licenciandos que já lecionam.
As
dúvidas e hesitações não os impedem, de modo geral, de confirmar a importância
do lugar da pesquisa na formação e no trabalho do professor, seja ela mais
próxima do modelo dominante na universidade, ou procurando formas mais ligadas
às necessidades e problemas vividos pelos docentes da educação básica. Alguns
chegaram mesmo a afirmar que, embora reconheçam diferenças entre tipos de
pesquisa para diferentes níveis de ensino, não aceitam qualquer discriminação
que estabeleça hierarquias entre eles.
Os
temas da importância e da necessidade da pesquisa na escola básica quase sempre
vieram acompanhados de um discurso sobre a profissão docente e não poucas vezes
associados à relação entre formação inicial e prática docente. A pesquisa foi
considerada importante e necessária para dar conta da atualização profissional
dos professores. É consenso entre os entrevistados que a formação inicial
sozinha não basta à construção de um profissional docente, que responda
satisfatoriamente aos reais desafios da escola básica.
As
condições de trabalho do professor da escola básica são fundamentais para a
viabilidade da realização de pesquisas, de acordo com a opinião dos poucos
entrevistados que insistiam em assegurar essa possibilidade. Aqui também
verificamos maior convicção entre aqueles profissionais que já atuaram na
escola básica. A falta de recursos específicos, de tempo do professor, a
inadequação das estruturas e a ausência de órgãos de fomento são as principais
dificuldades apontadas. Como informam vários entrevistados, num contexto em que
faltam professores em sala de aula e os orçamentos quase não sustentam o
pagamento dos professores que têm unicamente a missão de ensinar, fica difícil
pensar a viabilidade da pesquisa na escola de educação básica, sem o aporte de
recursos específicos para tal finalidade. A realidade é apresentada pelos
entrevistados de forma crua: nenhum órgão oficial destinado ao desenvolvimento
da pesquisa libera verbas para a pesquisa na escola básica. Algumas iniciativas
nesse sentido já alcançaram algum reconhecimento na área de Matemática, em
ambas as instituições estudadas, conseguindo envolver professores que estão
atuando na educação básica. Mas isso ainda está longe de ter um impacto
significativo na construção de uma mentalidade acadêmica que contemple a
pesquisa do professor das séries iniciais.
Foi
interessante constatar a segurança com que alguns entrevistados, mormente
aqueles que trabalham na escola básica, insistiam na viabilidade da realização
de pesquisa. Aos seus olhos, o professor que realmente encara a necessidade da
pesquisa para a realização do seu trabalho, contra todas as dificuldades,
sempre acaba experimentando algum sucesso em suas iniciativas. Gimeno Sacristán
(1999) ressalta as motivações pessoais como determinantes na ação educativa dos
professores. O professor que deseja realizar pesquisa no ambiente do ensino
secundário sempre conseguirá algum resultado. Para isso, é fundamental que
traga na sua bagagem a pesquisa como parte integrante de sua vivência
profissional, afirma o autor.
O
terceiro eixo de nosso roteiro de entrevista visava a obter junto aos
entrevistados informações sobre como eles vêem e fazem a integração da pesquisa
na formação dos licenciandos e, na medida do possível, como acham que ela é
feita entre seus colegas de área, também formadores de futuros professores.
Esperávamos, com as respostas, poder compor um quadro indicativo de mudanças em
direção a dispositivos e recursos que venham ao encontro do desejado
desenvolvimento do pesquisador, dentro do próprio processo de formação do
futuro professor.
Segundo
revelam alguns entrevistados, a formação para a pesquisa tem sido encaminhada,
predominantemente, a partir da iniciativa de determinados docentes da
universidade. Isso se manifesta principalmente por convites aos alunos para
participarem de seus grupos de pesquisa, monitoria, pesquisa de campo para
subsidiar o trabalho de conclusão da sua disciplina, participação em eventos
científicos, dentre outras. Na medida em que os alunos aproveitam as
possibilidades criadas, vão se familiarizando com vários aspectos que envolvem
uma atividade de pesquisa. Na organização curricular dos cursos, no entanto,
isso não aparece explicitamente.
Os
professores reconhecem que para favorecer a formação para a pesquisa torna-se
necessário que ela seja assumida como um princípio básico na proposta
curricular. Nesse sentido, o curso forçosamente criaria uma ambiência para a
pesquisa, em que os alunos seriam estimulados, entre outras coisas, a se
inserirem em grupos de pesquisa estruturados. Diferentemente disso, a pesquisa
acaba sendo mais trabalhada apenas com os alunos que têm bolsa de iniciação
científica. De um modo geral, os professores concordam que a iniciação
científica representa uma idéia bastante salutar no que se refere à formação
inicial para a pesquisa, não podendo, entretanto, significar o único contato
que o aluno da graduação tem com essa atividade. Para os que prosseguem na
pós-graduação esse parece ser um caminho natural, em todas as áreas nas quais
selecionamos nossos entrevistados. Entretanto, para os que pretendem tornar-se
professores a iniciação científica ainda não figura como parte integrante e
indispensável no curso de formação, o que constitui indiscutível falha aos
olhos dos nossos entrevistados.
É
oportuno introduzir aqui uma informação, oferecida por vários deles, que pode
ajudar a entender um pouco melhor essa inaceitável duplicidade de caminhos em
relação à pesquisa. Dizem alguns que a pesquisa oferecida na formação do
bacharel é aquela própria do meio acadêmico, em todas as áreas ditas
científicas e a pesquisa oferecida ao futuro professor deveria ser voltada para
questões mais práticas, relativas a problemas de ensino e aprendizagem
concernentes aos alunos da faixa etária da educação básica, sobretudo
levando-se em conta a enorme expansão registrada nas redes de ensino desse
nível. É preciso, entretanto, lembrar o risco envolvido nessa posição, que pode
ensejar o surgimento de dois tipos hierarquizados de pesquisa, um deles,
próprio do âmbito universitário, o científico, o outro, adequado ao nível da
educação básica, o pedagógico.
A
monografia, ou trabalho de final de curso, também foi mencionada por quase todos
os entrevistados, nem todos favoravelmente. Alguns consideram a monografia como
um obstáculo que atrasa a conclusão do curso, visto que muitos alunos não
conseguem cumpri-la satisfatoriamente. Outros defendem que a monografia é uma
tentativa de aproximar o aluno da atividade de pesquisa e, por isso, deve
continuar sendo exigência. E alguns outros, ainda, consideram que a monografia
é importante para habilitar o estudante para o hábito de escrever, articular
idéias, criticar, o que não significa afirmar que o fato de uma graduação
contar com a monografia esteja formando para a atividade de pesquisa. Para
alguns, esse trabalho final pode constituir um espaço seguro para o aluno
ensaiar os primeiros passos em direção à atividade de pesquisa, sob a supervisão
de um pesquisador, seu professor orientador, que assume a responsabilidade de
guiar esses passos e de amparar os primeiros tropeços. O que acaba nem sempre
acontecendo de fato, já que nem todos os professores da graduação estão
dispostos, por uma série de razões, a assumirem o importante papel de orientar
um trabalho de iniciante, com todos os percalços que ele apresenta,
contribuindo, assim, para reforçar a prática predominante de monografia como um
exercício de mera repetição de idéias recolhidas de vários autores.
Entre
as medidas sugeridas para aproximar o curso de licenciatura de um atendimento
mais satisfatório quanto à formação de professores pesquisadores, aparecem
sugestões relativas à reformulação do currículo do curso. Algumas sugestões já
foram implantadas sob forma de novas disciplinas ligadas à metodologia da
pesquisa ou com a oportunidade efetiva de participação dos alunos em projetos
desenvolvidos por seus professores.
O
que se evidencia no discurso da maioria dos professores de ambas as instituições
é a idéia de que para formar o futuro professor afinado com a atividade de
pesquisa, o encaminhamento do curso precisa mudar, possibilitando um contato
mais direto do aluno com a pesquisa. O conteúdo ainda é considerado o aspecto
que mais impulsiona a formação dos professores. Trabalha-se, sobretudo, para
que o aluno saia da licenciatura com o maior domínio possível do conhecimento a
ser ensinado.
Uma
outra informação, bastante ressaltada pelos nossos entrevistados, merece
destaque neste balanço de achados. Muitos deles se referiram à expansão dos
programas de pós-graduação, como fonte responsável pelo crescimento das
atividades de pesquisa, por parte dos próprios professores formadores e, em
decorrência, também pelos seus alunos, inclusive os da licenciatura. Temas de
teses e dissertações, em preparação ou já defendidas, acabam repercutindo sobre
o trabalho dos professores em seus cursos, beneficiando assim colegas e alunos
da instituição à qual estão vinculados, iniciando o que gostaríamos de considerar
como uma nova cultura na vida universitária. Para tanto é necessário que
estejam disponíveis estímulos e condições nas instituições de ensino superior,
o que dificilmente ocorre fora das universidades e, mesmo assim, nem em todas
elas.
Temos
entendido que a pesquisa pode representar um componente a mais na formação do
professor. Ela pode conferir ao professor uma ótima condição para o exercício
de uma atividade criativa e crítica, onde há o questionamento, mas, também, a
indicação de soluções para os problemas investigados. Mas para isso é preciso
superar os obstáculos, sendo um deles a própria formação docente. Como formar
profissionais práticos, reflexivos, capazes de analisar, de teorizar sobre suas
ações, e, mais do que isso, de pesquisar?
Como
já tivemos oportunidade de comentar (Lüdke, 2001), a criação e instalação na
França de um sistema de formação de professores (os Institutos Universitários
para a Formação de Mestres – IUFMs), em um locus novo, fora da
universidade e também do antigo nicho centrado nas escolas normais, apresenta a
pesquisa como um dos componentes básicos da nova proposta de formação. Pela
evolução dos estabelecimentos já implantados desde o início dos anos 90,
percebe-se, entretanto, uma orientação demasiadamente voltada para a prática
pedagógica, em detrimento de uma introdução mais vigorosa na prática de
pesquisa (Bourdoncle, 1997).
O
quarto eixo tocado nas entrevistas refere-se à concepção de pesquisa do
entrevistado. A ambigüidade que cerca o conceito de pesquisa observada entre os
nossos entrevistados da primeira etapa, professores do ensino médio, de alguma
forma aparece entre os seus formadores. Encontramos visões que vão desde a mais
ampla, em que qualquer tipo de investigação pode ser considerado pesquisa, até
outra extremamente restrita, para a qual só se pode considerar pesquisa a
investigação que seguir o rigor acadêmico, com destaque para a metodologia,
preocupação com a produção de conhecimentos novos e obrigatoriedade de
publicação dos resultados para ampla discussão entre os pares.
É
certo que o predomínio de uma visão clássica estrita de pesquisa limita a
possibilidade de sua realização por professores da escola básica. Para que a
pesquisa de tais professores seja reconhecida socialmente, é necessário que se
amplie o conceito de pesquisa empregado tradicionalmente pela academia.
Cochran-Smith e Lytle (1999) e Anderson e Herr (1999), pesquisadores
americanos, já mencionados por nós (Lüdke, 2001), analisam a prevalência de
critérios que dão conta de alguns tipos de pesquisa, mas não de outros e, nessa
direção, propõem alguns que consideram mais próximos do tipo de pesquisa que o
professor da educação básica faz ou pode fazer. Os critérios propostos estão
voltados para formas de validação e de veiculação dos trabalhos de pesquisa
mais integrados à realidade da vida das escolas, ao tipo de relacionamento
entre seus professores, à oralidade, ao diálogo, à conversação, à participação
democrática, entre outras características. Como se trata de um campo de estudo
em plena construção, não é fácil a definição de critérios que contemplem
diferentes tipos de pesquisa e o natural anseio por uma definição consensual.
Nessa
perspectiva, é importante relembrar a idéia de continuum mencionado por
Beillerot (1991) e já comentada por nós (Lüdke, 2001). O autor alerta sobre o
perigo de classificar e valorizar como "superiores" e
"científicas", as pesquisas feitas na universidade, deixando de
considerar a seqüência das anteriores, que vieram preparando o caminho pelo
qual os pesquisadores de nível superior chegam às suas descobertas.
Como
já tivemos oportunidade de comentar (Lüdke, 2001a), temos procurado um consenso
em torno do conceito de pesquisa e levantado as peculiaridades tanto da
pesquisa universitária quanto daquela realizada pelo professor da escola
básica, sem que o reconhecimento das diferenças signifique hierarquização entre
as duas atividades.
A
PESQUISA E OS QUE DECIDEM SOBRE ELA
Considerando
a ambigüidade que cerca o conceito de pesquisa, revelada nas duas etapas da
investigação já realizadas, ficamos bastante instigados a tentar cotejar essa
questão com a opinião daqueles que decidem sobre pesquisa. Para poder divisar
quais são os elementos levados em conta por pessoas que decidem sobre concessão
de financiamento, bolsas para o pesquisador, publicação do seu relatório e
espaços em encontros científicos, propusemos uma terceira etapa do nosso
estudo, em pleno andamento, para investigar o que realmente conta como
pesquisa.
Na
universidade nota-se a preocupação com a formação do professor para a pesquisa
mais evidente no discurso do que na prática. Esta continua efetivamente
priorizando a formação do bacharelando como a de pesquisador. Igualmente a
pesquisa realizada na universidade não é, em geral, caracterizada por uma
preocupação clara com os problemas da escola básica. Além disso, ainda há
autores como Hammersley (1993) que defendem a distinção entre ensino e
pesquisa, acreditando que a atuação concomitante das duas funções pode ficar
comprometida para ambos. Denunciam o risco de reforçar a supremacia da pesquisa
sobre o ensino e o prejuízo que pode advir, tanto para o ensino, quanto para a
pesquisa, se procuramos aglutinar na figura do docente os dois papéis, o de
professor e o de pesquisador.
Além
disso, como já assinalamos, tem crescido e ocupado cada vez mais espaço na
literatura a preocupação com a pesquisa do professor. Trabalhos como os de
Zeichner e Noffke (2001), Cochran-Smith e Lytle (1999), Anderson e Herr (1999),
Lagemann e Shulman (1999) nos EUA, e os de André (1994, 2001), Geraldi,
Fiorentini e Pereira (1998), Diniz-Pereira e Zeichner (2002), Fiorentini
(2004), entre outros, no Brasil, revelam o grande interesse e atualidade desse
tema.
Continua,
entretanto, bastante obscura a questão da própria identidade da pesquisa do
professor da educação básica. Aos seus próprios olhos, e aos de seus
formadores, essa forma de pesquisar tem sido considerada importante, por todos
eles, como mostram nossas entrevistas. Mas quando se trata de assegurar as
condições que permitam ao docente levar a cabo essa importante função, ergue-se
uma barreira quase intransponível, formada por componentes de natureza
burocrática, como carga horária de aulas e outras obrigações do trabalho
escolar, mas também de características pessoais do professor e de sua formação,
assim como da instituição, na qual trabalha, tais como, a integração com grupos
de colegas, a colaboração com professores da universidade e, sobretudo, a
possibilidade de receber uma bolsa ou um auxílio financeiro para o desempenho
dessa atividade.
No
domínio do desenvolvimento de pesquisa por professores, temo-nos deparado com
uma fértil literatura, apresentando propostas que apontam para a pesquisa-ação
ou pesquisa cooperativa ou, ainda, pesquisa em colaboração (Diniz-Pereira,
2002; Kemmis e Wilkinson, 2002; Fiorentini, 2004).
A
pesquisa-ação ou pesquisa colaborativa tem sido apontada como uma alternativa
viável, como opção metodológica para o professor desenvolver atividade de
pesquisa. Todavia não podemos deixar de mencionar algumas reservas, amplamente
conhecidas pelo meio acadêmico, quanto ao emprego desse tipo de pesquisa. As
críticas mais comuns à pesquisa-ação recaem, justamente, sobre o risco de
rebaixamento do nível de exigência acadêmica. A dificuldade enfrentada pelo
pesquisador para desenvolver sua análise com objetividade e rigor acaba
constituindo também um obstáculo ao sucesso do trabalho investigativo. O fato é
que vários trabalhos intitulam-se pesquisa-ação, mas se aproximam muito mais de
relatos de experiência. Não podemos perder de vista que pesquisa é construção
de conhecimento e pesquisa-ação é construção de conhecimento mais ação. Em
vários casos, ou observamos uma coisa ou outra, ou nenhuma coisa, nem outra. Ou
seja, não se faz a pesquisa, nem a ação proposta.
Reconhecemos
que existe uma dimensão educativa muito forte na pesquisa-ação, tornando-a uma
abordagem favorável ao estudo da escola, mas não somos inclinados à idéia de
restringir a pesquisa do professor a esse tipo de abordagem metodológica. A
própria complexidade que cerca o conceito e os critérios de validação de uma
pesquisa nos leva a não aceitar que postulemos à pesquisa do professor um tipo
próprio, sob o risco de minimizarmos as suas possibilidades investigativas.
Neste
sentido, diante de um cenário pouco definidor de critérios claros, próprio
talvez do período de construção (e desconstrução) que vivemos, como bem mostra
Shulman (1999), é bom saber quais os itens, as características, os elementos
levados em conta por quem julga, quem decide se o trabalho merece ou não ser
contemplado com o título de pesquisa e o que lhe for atribuível. Nosso trabalho
pretende, assim, contribuir para desvelar a cultura de pesquisa dominante entre
nós.
CONCLUSÕES
As
considerações feitas com base na investigação que temos realizado e também
nossas observações e reflexões a respeito do que se tem produzido e discutido a
propósito da complexa relação entre o professor da educação básica e a
pesquisa, estimulam-nos a propor algumas reflexões como conclusão. Dois
aspectos básicos merecem uma atenção especial, pelas implicações que têm com a
questão focalizada: a própria situação atual da pesquisa em educação e o perene
desafio da formação de professores em nosso país.
Quanto
à pesquisa em educação, embora não pretendamos, nem possamos, fazer um balanço
do seu estado no presente, queremos, pelo menos, apontar alguns problemas
particularmente significativos para a nossa discussão. Em recente apresentação
em reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação –
Anped –, André e Lüdke (2004) desenvolveram uma análise sobre pesquisas acerca
do tema da formação de professores na última década, sob a forma de
dissertações de mestrado e teses de doutorado, em aproximadamente 60 programas
de pós-graduação em educação do país. André tomou por base um estudo já feito
no início da década de 1990 e atualizou suas análises até o ano de 2002. Em
suas análises, apontou vários problemas, dentre os quais vamos destacar aqueles
que têm maior repercussão sobre a questão por nós estudada. Um primeiro ponto
refere-se ao excesso de estudos baseados em opiniões de professores, obtidas
por meio de entrevistas. Essas opiniões têm ficado, em geral, restritas a um
nível de simples transcrição, sem as necessárias análises que aprofundariam os
seus possíveis sentidos em conexão com a reflexão teórica disponível e a
própria reflexão do pesquisador.
Um
outro ponto levantado revela a falta de clareza em relação ao próprio objeto em
estudo. Trata-se de uma questão grave, uma vez que um número considerável de
pesquisadores iniciantes, alunos de mestrado e doutorado, não conseguem chegar
a uma definição e delimitação claras do seu problema de pesquisa, o que
compromete todo o trabalho na sua essência. Qual é a contribuição que o pós-graduando
se propõe oferecer? Ele está se beneficiando de um programa de mestrado ou de
doutorado, com todos os recursos aí envolvidos, sobretudo, com um tempo de sua
formação dedicado especificamente a essa tarefa. Sabemos que muitas vezes esse
tempo é dividido entre várias funções, mas acreditamos que a concomitância da
função docente com a de pós-graduação poderá representar uma via muito
importante para assegurar a vinculação do estudo de mestrado ou doutorado aos
problemas vividos nas escolas. No fundo o estabelecimento do problema a ser
estudado pelo pós-graduando representa um dos mais sérios desafios em seus
estudos. Não sabemos se os programas têm conseguido oferecer recursos para que
eles enfrentem com sucesso esse desafio.
Outro
ponto apontado por André, e que consideramos crítico para as relações entre o
professor e a pesquisa, é a própria concepção de pesquisa qualitativa que tem
predominado nos estudos de dissertações e teses. Registra-se uma certa confusão
entre as várias modalidades consideradas incluídas sob o termo pesquisa
qualitativa. Nem sempre são respeitadas as especificidades dessas modalidades,
ocasionando uma apropriação indevida de terminologias e aplicações inadequadas
de soluções metodológicas. A pesquisa de tipo qualitativo é muito ampla,
englobando várias tendências e procedimentos, o que requer um domínio teórico e
metodológico sobre seus princípios epistemológicos e suas possíveis aplicações,
sob o risco de cair em desvios e abusar de suas possibilidades.
Lüdke
confirmou os pontos vulneráveis apontados por André e insistiu, em especial,
sobre a precariedade das análises teóricas em grande parte das pesquisas
focalizadas. Destacou que parte desse problema se origina da própria
constituição da área da educacão, como campo de confluência de várias
disciplinas e também da fragilidade da formação teórica dos educadores,
justamente pela multiplicidade de aportes, dos quais não consegue dar conta por
completo. Assim, justifica-se a, já citada, perspectiva de Isambert-Jamati
(1992), sobre a importância do aprofundamento em uma dessas disciplinas, por
parte do futuro pesquisador.
Outro
ponto crítico trazido por Lüdke foi a entrada avassaladora da idéia de reflexão
como recurso para os problemas do trabalho do professor, em substituição, e
mesmo em detrimento, do componente de pesquisa, que deveria ser valorizado
nesse contexto, tanto para a formação, quanto para a atuação do docente. A
entrada decisiva dos métodos próprios da abordagem qualitativa também acabou
contribuindo para um certo afrouxamento dos cuidados com os aspectos teóricos e
metodológicos, que devem orientar todo trabalho de pesquisa. Alguns desses
trabalhos, tal como foi ilustrado por André em sua apresentação, não passam de
simples relatos de experiência, ou justaposições de afirmações dos informantes,
em geral professores, sem a devida concatenação dentro de um quadro teórico ou
mesmo a clara conexão com um problema de pesquisa, que pudesse apontar a
possível contribuição dos trabalhos analisados, para o enfrentamento das
dificuldades sofridas pelos professores e alunos da escola de educação básica.
Por
certo, em sua apresentação, André e Lüdke referiram-se apenas a uma parte da
pesquisa em educação realizada no país, representada pelo conjunto de estudos
dedicados à formação de professores em teses e dissertações. Entretanto, esse
segmento é o mais volumoso do conjunto recente de estudos defendidos por
mestres e doutores em educação e pode servir como ilustração dos problemas da
pesquisa nessa área.
Um
estudo recente, feito por Carvalho (2004) em tese de doutorado, focalizando
pesquisas efetuadas por docentes universitários sobre a rede pública de ensino
fundamental, também ilustra tais problemas. A autora analisou pesquisas feitas
com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico –
CNPq –, o mais importante órgão governamental de financiamento de pesquisa, em
todas as áreas, no país. Suas conclusões são intrigantes, ainda que decepcionem
um tanto: grande parte dessas pesquisas (cerca de 70%) sobre a escola pública
do ensino fundamental "não deixam claro o avanço teórico, experimental ou
prático obtido por elas, nos projetos e relatórios de pesquisa" (p.160). O
pesquisador da universidade encontra-se muito bem preparado teórica e metodologicamente,
muito bem informado sobre a produção acadêmica de colegas de outros países, mas
não tem sido capaz de chegar com seus recursos até os problemas vividos pelos
professores da escola básica e seus alunos, segundo a autora.
O
que queremos extrair das duas contribuições para nossas conclusões é a
distância registrada entre a pesquisa em educação e o cumprimento de seu papel,
junto às instituições de educação básica. Seja pelo distanciamento do foco que
orienta o trabalho do pesquisador universitário, apontado pelo estudo de
Carvalho (2004), seja pela precariedade de boa parte das pesquisas, comentada
por André e Lüdke (2004). Não apenas em nosso país se lastima esse desencontro
entre a pesquisa e os problemas da educação básica, haja vista a aguda análise
de Labaree (1992), nos E.U.A. e a relativa ao Canadá, em artigo de Tardif e
Zourhlal, publicado neste número.
No
lado da formação dos professores, persistem os problemas há muito registrados e
sentidos pela comunidade educacional, como pano de fundo. Nos cursos de
licenciatura, a marcante separação entre as disciplinas de conteúdos
específicos e as voltadas para a preparação chamada pedagógica. Também a
distância entre a formação de cunho teórico e a de cunho prático, concentrada
em estágios e práticas de ensino de duração muito reduzida e, de modo geral,
situados em fase posterior e com status inferior ao da formação teórica.
O curso de pedagogia sofre também com problemas semelhantes a esses, acrescidos
hoje com o de uma certa crise de identidade, ocasionada pela indefinição da
atual legislação a seu respeito e pela criação de novas instituições para a
formação de professores, como o curso normal superior e os institutos
superiores de educação. Continua-se a constatar uma clara associação entre a
preparação para o trabalho em pesquisa e a formação do futuro pesquisador por
meio dos cursos de bacharelado, nas diferentes áreas do conhecimento, em
detrimento dos cursos de licenciatura.
A
preparação do investigador e o exercício da pesquisa continuam privilégios da
universidade. A pesquisa continua a ser a moeda mais valiosa na contabilidade
da carreira do professor universitário. Como aproximar a pesquisa em educação
das duas realidades que lhe dizem respeito: a da universidade, onde ela é
habitualmente feita, e a da escola de educação básica, onde ela é requisitada
para atender os problemas mais vitais? Eis aí o desafio hoje enfrentado por
inúmeros colegas, pesquisadores que, como nós, procuram descobrir os caminhos
para superar os obstáculos e construir as pontes entre essas duas realidades. A
pesquisa efetuada na universidade beneficia-se dos recursos e da preparação dos
pesquisadores, que exercem essa atividade como própria de seu status e
de suas atribuições. Entretanto, temos que reconhecer a falta de produtividade,
ou mesmo de alcance da pesquisa universitária junto à escola básica e a
evidência de que os professores dessa escola estão mais habilitados para
perceber melhor os problemas cruciais que afligem esse nível de ensino. Ao
mesmo tempo, esses professores, que foram formados pela universidade, deveriam
ter recebido ali sua devida iniciação à pesquisa, para poderem se desenvolver
plenamente como profissionais autônomos, na melhor acepção do termo
"profissional", por mais discutível que reconheçamos que ele seja.
Uma
possível pista de aproximação começa a ser vislumbrada na terceira etapa de
nossa pesquisa: a opção por trabalhos "híbridos", isto é, elaborados
em conjunto por docentes da escola básica e seus professores nos cursos de
mestrado. Quem sabe não descobriremos aí os alicerces de uma ponte, cuja
construção deveria ter sido lançada há muito tempo, ou talvez até já tenha
sido, sem que tenhamos, entretanto, tido o cuidado de explorar devidamente toda
a riqueza dessa possibilidade em favor de um desenvolvimento mútuo. De um lado,
crescem a escola básica e seus professores, recebendo estes uma complementação
da formação obtida na licenciatura, e ao longo de toda a sua carreira, por
certo. De outro lado, cresce a universidade, pelo contato direto com os problemas
vitais da educação básica, assegurado pelos seus mestrandos-professores.
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NOTA:
1.
Algumas das idéias apresentadas neste texto já foram trabalhadas em publicações
anteriores que constam das referências bibliográficas.