Blog “EDUCAÇÃO BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA”, de autoria
de Álaze Gabriel.
Autoria:
RESUMO
O trabalho aborda a temática da qualidade na
educação infantil tomando como fundamento principal a idéia de direitos da
criança. São discutidos três aspectos referentes ao atendimento público na
educação infantil, especialmente na pré-escola: a relação entre oferta e
procura, a razão adulto/criança e a dimensão de cuidado no trabalho a ser
realizado nessa etapa da educação.
Key-words: educação infantil – educação
pré-escolar – direitos da criança – qualidade da educação
INTRODUÇÃO
Neste artigo apresentamos uma breve discussão sobre
qualidade e direitos da criança, tomando estes últimos como fundamento
principal para a definição de padrões mínimos na educação infantil. Com base
nesse fundamento, selecionamos três aspectos para uma discussão mais
específica: o atendimento à demanda de 4 a 6 anos pelo poder público, a razão
adulto/criança na maioria dos estabelecimentos e o cuidado como parte
integrante do trabalho realizado na pré-escola. Esses aspectos serão abordados
com base em pesquisa cujo objetivo principal foi observar práticas existentes
ou potenciais de participação das famílias na educação infantil, tendo como
pressuposto que tal participação, numa perspectiva democrática, deveria ocorrer
em todos os níveis e instâncias de decisão junto à escola. Acreditava-se também
que ela seria, por um lado, um direito da família, por outro, uma necessidade
da escola e, finalmente, que a participação poderia influenciar positivamente a
qualidade do trabalho.
O estudo compreendeu tanto pesquisa bibliográfica,
quanto de campo, esta última realizada em uma escola municipal de educação
infantil (Emei) da cidade de São Paulo, que atende crianças de 4 a 6 anos de
idade. Além de observações do cotidiano em diferentes momentos e
circunstâncias, foram realizadas entrevistas com todos os segmentos
profissionais e com crianças dos diferentes estágios e períodos de
funcionamento da escola. Foram ainda entrevistadas mães de crianças que já
haviam saído da escola e daquelas que a freqüentavam.
Ao abordar os aspectos que selecionamos para
discutir qualidade, utilizaremos além da análise documental, alguns dados da
pesquisa de campo.
QUALIDADE OU QUALIDADES?
Pode-se dizer que todos os estudos sobre o fenômeno
educacional implícita ou explicitamente, parecem discutir, questionar e, no
limite, apontar novos métodos, estratégias, meios etc. para uma melhoria da
assim chamada qualidade da educação. O mesmo vale para as políticas
educacionais, especialmente no que diz respeito às chamadas "reformas
educacionais" que, ao menos no plano do discurso, justificam suas
propostas e projetos com base na necessária busca da melhoria da qualidade da
educação.O mesmo termo, contudo, pode assumir diferentes significados e
posicionamentos, tanto ideológicos quanto práticos. Fúlvia Rosemberg, em
trabalho apresentado no 1º Simpósio de Educação Infantil promovido pelo MEC em
1994, toma a "eqüidade" como um dos eixos para se pensar a qualidade
da educação infantil, e faz o seguinte alerta:
Esse eixo – o da eqüidade – como fundamental para
definir metas e critérios de qualidade, nos afasta dos modelos importados do
mundo comercial, como afirmam Pfeffer e Coote (1991). Tocar nestes modelos,
hoje é importante por conta da avalanche de seminários, produções sobre
qualidade e/ou qualidade total que vem invadindo o país. Os modelos criticados
por Pfeffer e Coote são: o tradicional, o científico, o da excelência e o
conservista. Talvez dentre eles, no Brasil, o mais difundido seja o tradicional
que visa prestígio e posições vantajosas. Ele é perceptível, por exemplo, em
toda creche, seja pública ou conveniada, que, ao ali se entrar tem-se a
sensação de um cartão de visitas: para mantê-las, as regras são autoritárias; o
espaço é pensado para o visitante. Ele está presente na ampliação de vagas, na
extensão da oferta de creches para engrossar estatísticas de atendimento a
custas de redução do per capita. Ele está presente, quando o programa de
creches responde a fins eleitorais, construindo-se prédios que mais se parecem out-doors.
Quando, ao invés de investir na melhoria da qualidade de programas já
existentes, se criam novos programas, com nomes pomposos, para marcar a nova
administração. (1994, p.155)
Pode-se observar, assim, que "qualidade"
não se traduz em um conceito único, universal e absoluto, de tal modo que
diferentes setores da sociedade e diferentes políticas educacionais podem
tomá-lo de modo absolutamente diverso.
José Gimeno Sacristán, ao discutir os problemas
relativos a reformas educacionais implementadas sem maiores considerações, diz
o seguinte acerca da questão da qualidade:
Outra das características estruturais das reformas
educacionais atuais é sua justificação pela busca de uma melhor qualidade.
Contraditoriamente, em tempos de crise de expansão e escassez de recursos, o
apelo à qualidade aparece como palavra de ordem de justificação das reformas e
das políticas educacionais. (1996, p.63)
Um dos problemas mais recorrentes é que,
especialmente os documentos legais que apresentam a busca de melhoria da
qualidade como meta não especificam o que ela seria, como se expressaria ou em
quais critérios poderia se pautar e, mais sério, quais seriam as ações
concretas que viabilizariam o alcance de uma "nova" qualidade. Assim,
principalmente "em momentos de crise no gasto social, o discurso sobre a
qualidade se restringe a certos significados mais estritamente eficientistas e
a argumentos técnicos" (Sacristán, 1996, p.64). Vale lembrar que uma boa
educação tem um custo e que ele não é baixo; portanto, falar em qualidade na
educação implica necessariamente discutir recursos para o seu financiamento
(Pinto, 2000).
Peter Moss, um dos representantes da Rede da
Comunidade Européia de Acolhimento de Crianças – Reac –, ao relatar1
o processo de discussão e elaboração de critérios de qualidade arrolados pela
rede, bem como resultados de pesquisas na Europa sobre o termo
"qualidade", afirma tratar-se de um conceito relativo, baseado em
valores e crenças. Tal conceito envolve subjetividades e é passível de
múltiplas interpretações. Sua "definição", ainda que provisória, deve
configurar-se como processo democrático, contínuo e permanente, que nunca chega
a um conceito final e absoluto, devendo ser constantemente revisado e
contextualizado no espaço e no tempo. Mais importante do que uma conceituação
exaustiva, é o processo de sua discussão, do qual todos os envolvidos devem
participar: educadores, famílias e crianças. Para além do âmbito técnico (da
"excelência"), o conceito deve ser visto pelo âmbito filosófico: não
é a busca da verdade absoluta, é campo de opções. Tomados esses cuidados, ou
seja, estando claro que qualquer conceito de qualidade não é neutro e que
implica opções, quando se toma o eixo da qualidade para avaliar a oferta de
educação – no caso, a infantil – é possível, e necessário, fazer opções para
desenvolver critérios "universais", embora situados historicamente,
que se prestem a nortear essa avaliação.
Jytte Juul Jensen, representante da Dinamarca na
Comissão Européia de Atendimento à Criança, também apresenta de modo bem claro
como foram as discussões dessa comissão em torno da questão da qualidade e como
se organizou o documento intitulado Qualidade dos serviços para crianças
pequenas: um documento de reflexão.
O documento procurou definir a qualidade com base
nas necessidades das crianças consideradas a partir de valores que correspondem
ao que os autores entendem como direitos da criança. Uma dimensão filosófica
importante do documento é que a definição de qualidade é relativa. Ela será
sempre marcada por nossos valores, que refletem nossas crenças, que nunca são
objetivas. Então o documento explicitou quais são os valores e os objetivos que
perseguimos para que o cuidado e a Educação Infantil sejam de qualidade.
(Jensen, 1994, p.161)
Desse modo, parece importante acentuar que, como
esses autores indicam, discutir qualidade é entrar no campo dos valores, não se
tratando de assunto cuja solução advenha de alguma fórmula específica.
Além disso, vale mencionar outro importante alerta
feito por Jensen ao refletir sobre o valor do documento europeu:
...definir a qualidade e desenvolver serviços que
sejam de boa qualidade é um processo a longo prazo. O próprio processo é
importante em si mesmo; fornece oportunidades a pessoas e grupos de interesse
para trocarem idéias e perspectivas, para perceberem novas formas de ver,
compreender, identificar pontos de vista comuns e áreas em que ocorrem
divergências legítimas. Perde-se muito se se assume uma perspectiva estática
frente aos critérios de qualidade. Se não se discutem os critérios e concepções
de qualidade propostos pelos especialistas, não acredito que o trabalho possa
ter o impacto desejado na prática das políticas e dos programas de Educação
Infantil. (1994, p.162)
Em suma, o primeiro e principal cuidado na
discussão em pauta é ter clareza de que se trata de qualidades e não da
qualidade.
A GARANTIA DE DIREITOS COMO CRITÉRIO DE QUALIDADE
Também a infância e todas as idéias, valores e
conceitos que giram ao seu redor têm sido construídos e transformados
historicamente. Nem sempre as crianças despertaram os mesmos sentimentos, as
mesmas preocupações e nem sempre foram objeto de atenção, como se vê hoje, por
exemplo, para o mercado de consumo. Ao longo da história, esses sentimentos,
valores e atenção alteravam-se à medida que se alterava a própria dinâmica
econômica e social. Ao mesmo tempo, não há, e não houve, uma única forma de se
compreender e de se relacionar com a infância, ainda que em uma mesma
sociedade, em um mesmo período.
Moysés Kuhlmann Jr., de acordo com Cambi e
Ulivieri, autores que criticam a perspectiva "linear" de Ariès quanto
à história do sentimento de infância, assim se manifesta:
A realidade social e cultural da infância resulta
decididamente mais complexa: primeiramente, articulada em classes, com a
presença de ao menos três modelos de infância convivendo ao mesmo tempo; de
outro lado, é um percurso que vai da codificação do cuidado à mitificação da
infância. (1998, p.21)
Eloísa Acires Candal Rocha (1999), discorrendo
sobre as diferentes perspectivas acerca da pedagogia e da infância, afirma que
"uma mesma sociedade, em seu tempo, comportará a partir de sua
constituição socioeconômica e cultural, diferentes infâncias" (p.39).
Sonia Kramer, ao discutir o conceito de infância,
alerta para os riscos de se adotar uma perspectiva que se limite às diferenças
etárias, biológicas, em que a criança seria tão-somente caracterizada pela
"falta de idade", de tal modo que se poderia ter, em tese, uma
criança universal, com características comuns independentemente de qualquer
outra variável.
Ao se realizar o corte com base no critério idade,
procura-se identificar certas regularidades de comportamento que caracterizam a
criança como tal. Entretanto, a definição deste limite está longe de ser simples,
pois ao fator idade estão associados determinados papéis e desempenhos
específicos. E esses papéis e desempenhos (esperados ou reais) dependem
estreitamente da classe social em que está inserida a criança. Sua participação
no processo produtivo, o tempo de escolarização, o processo de socialização no
interior da família e da comunidade, as atividades cotidianas (das brincadeiras
às tarefas assumidas) se diferenciam segundo a posição da criança e de sua
família na estrutura socioeconômica. Sendo essa inserção social diversa, é
impróprio ou inadequado supor a existência de uma população infantil homogênea,
ao invés de se perceber diferentes populações infantis com processos desiguais
de socialização. (1995, p.15)
A crítica à perspectiva que toma a criança como ser
universal com diferenças baseadas apenas no critério idade também é feita por
Rocha, quando a autora discorre sobre o "conceito moderno de
infância":
...esta visão da delimitação da infância por um
recorte etário definido por oposição ao adulto, pela pouca idade, pela
imaturidade ou pela dita integração social inadequada, está sendo contestada,
principalmente no final deste século, pela negação ao estabelecimento de
padrões de homogeneidade indicados por algumas tendências nos campos da sociologia
e da antropologia, articulados com algumas abordagens da psicologia, que
apontam, como necessidade, a adequação dos projetos educativos a demandas
diferenciadas, rompendo com as desigualdades e vivendo o confronto. Pela via da
contextualização, da heterogeneidade e da consideração das diferentes formas de
inserção da criança na realidade, nas atividades cotidianas, nas brincadeiras e
tarefas, delineia-se um outro conceito de infância, representativo de um novo
momento da modernidade. (1999, p.38)
Partindo desse referencial, podemos discutir certas
características das crianças e sobretudo seus direitos, estes sim, iguais para
todas, pois, ainda que se baseie na idéia de que conceitos e valores sejam
historicamente transformados e portanto provisórios, não absolutos, há que
ressaltar a emergência, em diferentes períodos, de alguns consensos. Dentre
esses consensos, dos quais partilha a sociedade de um modo geral, pode-se
citar, na atualidade, a questão dos direitos das crianças; ainda que estejamos
longe de atendê-los em sua totalidade, há um forte movimento no sentido de
reivindicá-los.
Desse modo, uma forma interessante, para pensar a
qualidade no atendimento à criança relaciona-se à idéia de garantia e
efetivação de seus direitos, já consagrados universalmente e, do ponto de vista
legal, bem definidos. Esses direitos estão explicitados em documentos que vão
desde a Declaração Universal dos Direitos da Criança, para mencionar o plano
internacional, passando pela Constituição Federal Brasileira de 1988, Estatuto
da Criança e do Adolescente – ECA (lei n. 8.069 de 1990), Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional – LDB (n. 9.394/96), e o Referencial Curricular Nacional
para a Educação Infantil, de 1998, entre outros.
Quanto à questão educacional, o aspecto mais
relevante da Constituição Federal de 1988 para a educação infantil está em seu
art. 208, inciso IV, ao afirmar que "o dever do Estado com a educação será
efetivado mediante a garantia de: (...) atendimento em creche e pré-escola às
crianças de zero a seis anos de idade." Além de outros tópicos importantes
no que diz respeito ao atendimento de 0 a 6 anos na lei maior do país,
interessa destacarmos, do seu art. 206, no qual se afirmam os princípios sob os
quais o ensino deve ser ministrado, o contido no inciso VII – "garantia de
padrão de qualidade" – como um dos norteadores também para as instituições
de educação infantil. Com base nesses dois artigos, podemos concluir que, no
plano legal, a oferta de educação infantil não apenas passa a ser uma obrigação
do Estado como também deve ser oferecida com qualidade.
O Estatuto da Criança e do Adolescente define os
seguintes direitos como fundamentais: direito à vida e à saúde (cap. I), à
liberdade, ao respeito e à dignidade (cap. II), à convivência familiar e
comunitária, à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer (cap. III). Quanto à
educação, o direito é previsto para todas as faixas etárias, incluindo a
criança de 0 a 6 anos de idade.
Para o que nos interessa mais imediatamente na
discussão acerca de qualidade na educação infantil, destaquemos dois
importantes aspectos contidos no ECA. No art. 5º afirma-se que "nenhuma
criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da
lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos
fundamentais." No art. 53, ao tratar do direito à educação, define que
esta deve assegurar, entre outros aspectos: "o direito de ser respeitado
por seus educadores." Para a educação infantil especialmente, em face das
limitações de autodefesa das crianças em razão de sua pouca idade, isto é
absolutamente relevante. Sabe-se que em algumas instituições, práticas como os
castigos de toda natureza, algumas vezes físicos, ainda se fazem presentes. O
fato de haver uma lei contra isso não garante, evidentemente, a sua superação,
mas representa, sem dúvida, um poderoso instrumento de repressão a essas
práticas. Ademais, de uma outra forma, o conteúdo desses artigos reafirma a
Constituição, indicando ser possível acionar o Estado para que ele não apenas cumpra
seu dever de oferecer o atendimento a todos que assim o queiram mas, além
disso, que o faça baseado no respeito aos direitos das crianças, ou seja, com
qualidade.
A nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, de 1996, além de ratificar o contido na Constituição e no ECA quanto
à obrigatoriedade de oferecimento de educação infantil em creches e pré-escolas
por parte do Estado (art. 4o, inc. IV), em seu art. 29 define
como finalidade da educação infantil "o desenvolvimento integral da
criança até 6 anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual
e social, complementando a ação da família e da comunidade." Além disso,
afirma que a avaliação nessa etapa da educação "far-se-á mediante
acompanhamento e registro de seu desenvolvimento, sem o objetivo de promoção,
mesmo para o acesso ao ensino fundamental." Pelo que se tem, embora não se
explicite especificamente a temática da qualidade para a educação infantil, o
seu conteúdo demonstra preocupação com a questão ao propor como objetivo o
desenvolvimento integral da criança e uma avaliação de caráter mais
qualitativo.
O Referencial Curricular Nacional para a Educação
Infantil explicita os seguintes princípios sobre o que seria um trabalho de
qualidade:
• respeito à dignidade e aos direitos das crianças,
consideradas nas suas diferenças individuais, sociais, econômicas, culturais,
étnicas, religiosas etc.;
• direito das crianças a brincar, como forma
particular de expressão, pensamento, interação e comunicação infantil;
• acesso das crianças aos bens socioculturais
disponíveis, ampliando o desenvolvimento das capacidades relativas à expressão,
à comunicação, à interação social, ao pensamento, à ética e à estética;
• a socialização das crianças por meio de sua
participação e inserção nas mais diversificadas práticas sociais, sem
discriminação de espécie alguma;
• atendimento aos cuidados essenciais associados à
sobrevivência e ao desenvolvimento de sua identidade. (Brasil, 1998, v. 1,
p.13)
Em que pesem todas as críticas ao referido material,
tanto em relação ao seu significado do ponto de vista político, quanto ao seu
conteúdo específico do ponto de vista pedagógico (Kuhlmann Jr., 1999), mesmo
porque a "programação curricular" proposta por ele nem sempre condiz
com o expresso no mesmo documento como sendo direitos da criança, é importante
notar como estes últimos aparecem de maneira ampliada nesse documento. Tal
ampliação no entendimento de quais são os direitos da criança pequena traduz,
em certa medida, os resultados de uma longa trajetória de discussão e estudos
acerca da especificidade da faixa etária e dos significados que uma educação
formal, fora do ambiente familiar, pode adquirir nessa fase da vida.
Finalmente, no âmbito federal, há o documento
"Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos
fundamentais das crianças" (Brasil, 1997). Nesse documento os eixos para
aferição ou proposição de um atendimento de qualidade, no que se refere ao
trabalho realizado diretamente nas unidades (creche ou pré-escola) e no que se
refere às políticas de educação infantil, são alguns dos próprios direitos das
crianças já consolidados: o direito à brincadeira, à atenção individualizada, a
um ambiente aconchegante, seguro e estimulante, ao contato com a natureza, à
higiene e à saúde, a uma alimentação sadia, a desenvolver a criatividade,
imaginação e capacidade de expressão, ao movimento em espaços amplos, à
proteção, ao afeto e à amizade, a expressar seus sentimentos, a uma especial
atenção durante o período de adaptação, a desenvolver sua identidade cultural,
racial e religiosa.
Como se pode perceber, a idéia de direitos tem sido
diversificadamente abordada e difundida, estando presente em diferentes leis e
documentos oficiais. No âmbito deste artigo e no que tange à educação infantil,
trataremos, nos próximos itens, de três aspectos específicos que se relacionam
às condições mínimas e objetivas para a garantia, ao menos em parte, do
respeito aos direitos das crianças e, conseqüentemente, à garantia de um
atendimento de qualidade:
a. proporção entre a procura e a oferta de vagas em
creches e pré-escolas, com base na premissa de que qualidade, numa perspectiva
democrática, é atendimento para todos;
b. razão adulto/criança, por entender que este tem
sido um dos aspectos mais negligenciados, especialmente no município de São
Paulo e que, ademais, está estreitamente relacionada ao primeiro (é preciso
atender a todos, mas em condições dignas, e não simplesmente colocando um
sem-número de crianças nas classes já existentes);
c. dimensão de cuidado que, necessariamente, deve
estar presente nas práticas educativas com crianças pequenas e que ainda é
fruto de muita polêmica entre os profissionais da área, especialmente os de
pré-escola.
SOBRE O ATENDIMENTO
Numa perspectiva democrática a primeira idéia
acerca da qualidade da educação que vem à mente, diz respeito ao seu
oferecimento, por parte do Estado, ou seja, a primeira questão refere-se
necessariamente à idéia de quantidade. Por mais óbvio que possa parecer, uma
vez que não se pode falar em qualidade de algo que não existe, é importante
chamar a atenção para a relação entre qualidade e quantidade. Assim, é preciso
considerar, em princípio, a capacidade de atendimento dos sistemas públicos
diante da demanda existente, ou seja, a sua dimensão quantitativa.
No Brasil o atendimento a essa faixa etária ainda
está bem longe de dar conta de toda a demanda existente (Campos; Rosemberg,
Ferreira, 1995). Mesmo na cidade de São Paulo que conta com uma das maiores
redes municipais de escolas de educação infantil, o número de crianças sem o
atendimento ainda é bastante elevado. Em 1991, a população na faixa de 4 a 6
anos era de aproximadamente 557.900 e o total de crianças matriculadas na rede
municipal era de 161.175 crianças: apenas 28% dessa população. Tomando o ano de
1997 como referência e comparando-o com 1991, vê-se que houve aumento no número
de crianças atendidas pelo município, pois para uma população de
aproximadamente 527.460 crianças na faixa de 4 a 6 anos, 43%, ou 226.014
crianças estavam matriculadas nesta rede. Em 1998, mesmo havendo uma expansão
na oferta de vagas, menos da metade da população na faixa etária (43%) era
atendida pelo município (Fundação Seade, 2001).
A questão do atendimento na educação infantil é
polêmica, concorda-se. Por um lado, porque não se tem clareza quanto à real
demanda existente e, por outro, porque a matrícula por parte das famílias não é
obrigatória, ainda que, do ponto de vista legal, seja dever do Estado
oferecê-la. Como não se conhece com clareza a demanda existente, ou seja,
quantas famílias querem colocar seus filhos numa instituição de educação
infantil, não sendo a matrícula uma obrigatoriedade, torna-se muito mais
difícil exigir do Estado o seu referido "dever" de oferecimento de
vagas a todos que assim o quiserem. Como cobrar do Estado que ele atenda uma
demanda que não se conhece em termos quantitativos?
Antes mesmo da nova Constituição Federal do Brasil,
promulgada em 1988, os grupos que defendiam a educação infantil já propunham
uma política específica de financiamento para esse nível, preferencialmente com
algum tipo de subvinculação, o que não ocorreu.
A proposta de Plano Nacional de Educação2,
elaborada durante o 2º Congresso Nacional de Educação – Coned –, defendia o
atendimento de 50% em cinco anos e, 100% ao final de uma década, para a faixa
de 4 a 6 anos de idade, trabalhando com um custo aluno/ano de mil dólares. Essa
proposta, porém, foi considerada inviável pelo governo com a antiga desculpa de
que não há recursos disponíveis. Claro está que muitas são as necessidades da
população, além de educação, mas também é preciso ficar claro que o montante
destinado à área como um todo não é apenas mal distribuído e mal utilizado,
como quer fazer crer o governo. É preciso enfatizar que ele é insuficiente: os
gastos totais giram em torno de 3,7% do Produto Interno Bruto – PIB –, conforme
assinala o projeto de Plano Nacional de Educação (Proposta da Sociedade
Brasileira, 1997 – Pl n. 4.155/98). Assim, vale ressaltar que o atual governo*
não está preocupado com a educação, e isso não apenas com relação à infantil,
pois a Proposta de Plano Nacional (substitutivo Marchezan), que apontava não
para 10%, mas para 7% do PIB destinados à educação, teve este item vetado pelo
sr. Presidente da República, sem que nenhum outro índice fosse apontado no
Plano Nacional de Educação aprovado em lei.
Esse contexto, aliado à precariedade com que se deu
a expansão da educação infantil no país, propicia as condições para que o
debate sobre essa etapa da educação seja marcado por uma visão dicotomizada:
quantidade versus qualidade.
Fúlvia Rosemberg, em seminário nacional sobre os
rumos da política nacional de educação infantil em 1994, ao colocar quais
seriam os eixos mais importantes para encaminhar a discussão da qualidade,
entre outras coisas, indaga sobre a validade de se defender, hoje, a ampliação
em termos de cobertura. Entre outros aspectos, ela aponta que é preciso:
...discutir, com serenidade, as propostas de
expansão da cobertura. Quanto a este último aspecto, levanto algumas questões:
a proposta de universalizar o atendimento para toda a faixa de 0 a 6 anos
responde, efetivamente, à demanda da população alvo? É possível propor-se a
expansão da cobertura sabendo-se que creches e pré-escolas vêm sendo usadas por
crianças com mais de 7 anos, em desrespeito evidente a preceitos
constitucionais? É possível sugerir-se a expansão do atendimento que atinge, em
algumas regiões e programas, níveis tão baixos de qualidade, que agridem
direitos fundamentais da pessoa humana? (Rosemberg, 1994, p.156)
Suas considerações são importantes na medida em que
denunciam o reiterado desrespeito com que as políticas de educação infantil têm
sido implementadas no Brasil. De fato, a tradição da maioria das creches e
pré-escolas para a população de mais baixa renda é marcada por um atendimento
"pobre" e a reflexão da autora nesse sentido é bastante procedente:
Não considero linguagem dramática ou emocional
afirmar que no Brasil hoje o sistema de atendimento às crianças pequenas em
pré-escolas, mas especialmente nas creches, constitui uma iniciação precoce,
uma socialização, desde muito cedo, de pessoas que viverão, ao longo da vida,
uma trajetória de usuário desrespeitado pelos serviços que concretizam e
operacionalizam as políticas sociais. Uma história de não-cidadão. (Rosemberg,
1994, p.155)
Tais constatações, contudo, não podem servir como
fundamento para a recusa de discutir e, conseqüentemente, de lutar pela
expansão na oferta de vagas. Primeiro, porque estamos partindo do princípio de
que a educação infantil é direito de toda criança, etapa fundamental para o seu
pleno desenvolvimento. Segundo, porque, hoje, dadas as transformações sociais e
econômicas, a escola também é um recurso necessário como mecanismo de liberação
da mulher para o mercado de trabalho (ver, entre outros, Haddad, 1997). Assim,
não só a defesa da ampliação de vagas é necessária mas, também, a possibilidade
de períodos de atendimento que sejam mais compatíveis com as necessidades de
cada família. Ademais, uma vez que o atendimento às demandas sociais em geral
só é realizado sob pressão por parte da população interessada (Campos, 1991;
Sposito, 1993) e embora hoje já haja indícios de um maior consenso por parte da
sociedade quanto à importância dessa etapa da educação, é preciso fortalecer
tal idéia, pois a falta dessa consciência também ajuda a legitimar políticas
tímidas para a educação infantil (Haddad, 1997).
Se é evidente que algo precisa ser feito por um
atendimento que respeite a criança, garantindo-lhe as melhores condições, é
preciso que tal atendimento efetivamente exista para todas as crianças/famílias
que dele se queiram valer. Se o debate ficar centrado na questão da qualidade
como algo isolado, corre-se o risco de se reafirmarem as políticas vigentes e o
seu caráter marcado pela exclusão, pois, em vez de centros de excelência para
alguns privilegiados, precisamos de boas escolas para todos.
A esse respeito, alguns números da revista Criança
(Brasil, 1999), dirigida aos professores e professoras de educação infantil,
ilustram bem a política retórica do atual governo federal, pois a idéia
subjacente e veiculada com ênfase por este periódico é a de que cabe à escola e
aos seus profissionais, especialmente às professoras, a responsabilidade por um
atendimento de qualidade, ignorando tanto a demanda reprimida quanto as
condições objetivas de funcionamento dessas escolas. A revista traz vários
relatos de prática, que em tese poderiam contribuir para troca de idéias;
contudo, boa parte das experiências relatadas foram realizadas em escolas
privadas de educação infantil, cujo contexto e estrutura são absolutamente
diversos da realidade da escola pública em geral, e isto sequer é observado
para que se possa relativizar o seu peso.
Outro exemplo é o concurso "Qualidade na
educação infantil", organizado pelo MEC em parceria com a Fundação Orsa e
com a União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação – Undime –, para
premiar professoras e professores que desenvolverem projetos considerados de
qualidade. Mesmo que se tratasse de um estímulo e que se premiasse a unidade
escolar, isto já se mostraria como um encaminhamento injusto, adotado pelo
poder público, uma vez que se sabe que bons trabalhos não dependem só de boa
vontade, mas de condições econômicas objetivas. O pior, no entanto, é que, além
desse componente de injustiça, que potencialmente acaba premiando os que estão
em melhores condições e deixa de lado os que mais precisariam de incentivo –
técnico e financeiro –, fortalece-se o individualismo e a competitividade no
interior das próprias unidades educacionais, já que a premiação é para uma
pessoa e não para o coletivo da escola. Com isso acentua-se a idéia de que a
qualidade depende de cada um individualmente e de que se a professora ou
professor quiserem, podem fazer um bom trabalho independentemente de quaisquer
outras variáveis.
Tais procedimentos por parte do governo federal são
bastante ilustrativos para entender como é possível escamotear um dos aspectos
fundamentais e indissociáveis da idéia de qualidade: a dimensão quantitativa.
Desvia-se a atenção, e o problema de que ainda temos um enorme contingente de
crianças de 4 a 6 anos – para citar só a faixa da pré-escola – sem o seu
direito garantido de freqüentar uma escola, fica em segundo plano, como se este
não fosse ainda um dos principais pontos na agenda dos que lutam pela
democratização do acesso à educação infantil.
SOBRE A RAZÃO ADULTO/CRIANÇA
Se, por um lado, parece haver motivos para não
dicotomizar a discussão acerca do atendimento à criança pequena no que diz
respeito à quantidade e à qualidade, por outro, há que se discutir as formas desse
atendimento, sejam elas já existentes ou pretendidas.
Como se sabe, as condições de infra-estrutura e a
formação dos profissionais que trabalham com educação infantil, especialmente
em creches, são bastante precárias se olharmos para o país como um todo, sendo
o Sul e o Sudeste regiões com índices um pouco melhores. São Paulo pode ser
considerado um estado privilegiado, especialmente a capital, com sua rede de
pré-escolas, quando se compara o atendimento com o de redes do Nordeste, por
exemplo. Na capital paulista todos os profissionais que atuam nessa área
(pré-escola) têm pelo menos o curso de nível médio (magistério), as escolas têm
rede de esgoto, água encanada e energia elétrica3.
Em um país com índices altos de pobreza e assustadora precariedade no
atendimento oferecido às poucas crianças que conseguem obtê-lo, as condições
estruturais e de pessoal mencionadas, para São Paulo, podem parecer suficientes
para se garantir um atendimento de qualidade. Todavia, é preciso um olhar mais
atento para esse universo; é preciso não se contentar com o mínimo com base em
comparações sobre as desigualdades regionais. Em razão disso, chamamos a atenção
para um aspecto importante que em São Paulo tem-se configurado como um problema
histórico na garantia de um serviço de qualidade nas pré-escolas, qual seja, o
número absurdamente elevado de crianças por classe. Também nunca é demais
lembrar que as políticas de expansão na oferta de educação infantil sempre se
pautaram pelas opções de baixo custo, o que representou, na prática, grandes
agrupamentos de crianças, independentemente das condições humanas e materiais
dos equipamentos de atendimento disponíveis para este fim.
Assim, sem ignorar que nacionalmente há questões
mais prementes a serem resolvidas dada a extrema precariedade das escolas, há
um aspecto não menos importante a ser considerado quando se trata de definir
critérios de qualidade para a educação infantil, no caso, a razão
adulto/criança.
Já em 1979, a Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco – publicara um trabalho de Alastair
Heron (1981) no qual eram estabelecidos critérios de qualidade para programas
de educação infantil nos países em desenvolvimento, sendo que um destes
critérios era a razão adulto/criança. A relação recomendada era a seguinte:
Em documento elaborado em 1998 pela Comissão do
Conselho Nacional de Educação (Brasil,1998), com a finalidade de subsidiar os
Conselhos Estaduais e Municipais na definição de critérios para a
regulamentação e funcionamento das instituições de educação infantil, aparece
como recomendação a seguinte relação adulto/criança:
Em âmbito estadual, para citar um exemplo, a
Indicação n. 4/1999 do Conselho Estadual de Educação de São Paulo
"aconselha" a seguinte relação:
Como se vê, em termos de recomendação pode-se
dizer, por um lado, que o entendimento da necessidade de agrupamentos pequenos
quando se trata da educação infantil não é algo novo, já havendo um
generalizado consenso a esse respeito e, por outro, que os documentos oficiais
fazem indicações que poderíamos considerar bem razoáveis. Com pequenas
diferenças entre as recomendações "ideais", o que há em comum nos
três documentos antes apresentados é o limite de crianças nos grupos das mais
velhas (6 anos), fixado em 25 para cada adulto/educador(a).
Ocorre que, como já mencionado, as atuais políticas
educacionais, especialmente as de âmbito nacional, parecem primar pela
retórica. Primeiro porque não há lei, norma, regulamentação ou exigência quando
se trata dessa relação, mas, apenas sugestão ou indicação. Isto porque, se já
temos uma séria defasagem no atendimento à demanda, superlotando as escolas
existentes com um número elevadíssimo de crianças, imagine-se o que ocorreria
caso se tivesse que seguir com rigor essas orientações. Assim, embora se possa
considerar um avanço o fato de haver orientações oficiais, estabelecendo-se
como um dos critérios de qualidade uma razão adulto/criança que privilegie
pequenos agrupamentos, as condições objetivas não são oferecidas, porque não há
políticas de financiamento para a educação infantil.
Na rede municipal de educação da cidade de São
Paulo, o que se tem são classes variando entre 35 a 40 crianças por professora,
mesmo nos grupos de crianças menores, aquelas com quatro anos. Em se tratando
de crianças pequenas, cujas necessidades de educação e cuidado podem e devem
ser entendidas de modo mais abrangente, o problema do excesso de alunos por
professora parece tornar-se ainda mais sério. Como ouvir com a devida atenção
cada idéia, cada história, cada relato, enfim, como atender individualmente a
cada pequeno ou pequena se outros trinta e tantos reclamam a mesma atenção? Que
organização pode dar conta de número tão elevado de crianças sem que um certo
caos se instale, ou sem que alguns deixem mesmo de receber a atenção e as
orientações necessárias?
É possível afirmar que as famílias usuárias também
percebem as dificuldades de se trabalhar com tão elevado número de crianças,
embora também saibam o quanto é difícil intervir nessa realidade, até porque, o
mais das vezes, acabam considerando em primeiro plano o "privilégio"
de terem conseguido uma vaga. Em uma entrevista realizada durante a pesquisa de
campo, perguntamos a uma das mães se ela achava que a escola ou a professora
sabiam a respeito de suas expectativas e ela assim se pronunciou:
Não! Não sabia. Ou sabia e ela [a professora] fazia
o que podia (...) eu acho que a professora também deixava muito livre, cada
criança fazer aquilo que queria... Perdia muito material... é aquilo que eu
falei... muita criança... Na classe da minha filha tinha 36, então eu acho que
é mais barulho, porque pra você coordenar 36 crianças, duas já é difícil,
imagina 36!
Numa outra entrevista, ao falar sobre
possibilidades de participação das famílias na escola, uma das mães afirmou não
achar correto que elas estivessem presentes na sala de aula, apesar do grande
número de crianças, porque estas ficariam mais "manhosas e
desobedientes", o que ocasionaria maiores transtornos para a professora, e
concluiu: "é muita criança... a minha filha mesmo, imagina mais 30 ou 35
iguais a ela? Por isso que muitas vezes quando eu vou buscá-la a professora
está assim... com aquela cara de quem está acabada."
A situação é tão crítica, que até mesmo as
professoras, embora conscientes da necessidade de se trabalhar com grupos pequenos,
acabam convencendo-se de que é possível trabalhar com qualquer número de
crianças desde que a professora seja "criativa". No afã de justificar
uma situação contra a qual não conseguem lutar, buscam explicações e chamam a
si a responsabilidade pela qualidade da educação oferecida, e, mesmo que se
mencione a responsabilidade do Estado, esta não parece ganhar a devida
dimensão. É o que parecem indicar as idéias de Ivete, professora de 1º estágio
(crianças de 4 anos) quando tratamos do assunto:
É, no máximo trinta... o ideal seria de 20 a 25,
só! Só que a professora de educação infantil é professora porque gosta, porque
tem que gostar pra ter paciência com essas crianças, ela é uma pessoa criativa
por natureza, tem um dom artístico (...) Então, ela tem esse dom... então leva
35, 40 até 45 alunos, eu já tive 45 na sala... então ele leva, o professor
conduz, mas não é a melhor forma... fica sempre aquela criancinha... então pra
você atender realmente a criança precisa ter no máximo de 20 a 25. É uma utopia
hoje no nosso país, mas quem sabe um dia...
A professora conclui suas idéias relatando o seu
modo de trabalhar para dar conta de elevado número de crianças, e ao que tudo
indica, consegue realizar um bom trabalho. O fato é que nessa
"conta", além das possíveis necessidades de maior atenção por parte
das crianças, também não entram a rouquidão da professora, o seu ar cansado e
um tanto abatido, sua falta de disposição e de tempo para o lazer. É um
processo injusto porque não são oferecidas as condições mínimas de trabalho e a
idéia cada vez mais hegemônica é a de que a responsabilidade sobre a qualidade
desse trabalho cabe ao professor individualmente, ou, quando muito, à unidade
escolar.
Miguel Zabalza, discorrendo sobre um dos aspectos
relativos à qualidade na educação infantil – "qualidade do projeto" –
afirma que:
...os principais problemas relacionados à qualidade
do projeto têm relação, pela própria natureza desta dimensão da qualidade, com
as condições de financiamento e dotação destinadas ao desenvolvimento dos
programas de Educação Infantil. Modelos reconhecidos mundialmente pela sua
qualidade como, por exemplo, as Escolas Infantis de Réggio Emília na Itália,
reconhecem um gasto anual por criança superior a um milhão de pesetas. Sem
alcançar esses níveis de "qualidade do projeto", é preciso reconhecer
que não podem ser esperados grandes milagres de iniciativas baseadas na
"boa vontade" e no "esforço" das pessoas encarregadas de
implementá-los, mas sem que elas recebam os meios para desenvolvê-los dignamente.
Às vezes, os discursos políticos ou o marketing comercial não
correspondem aos fatos reais no nível de financiamento e de dotação de
recursos. E esta é a primeira condição, embora logicamente insuficiente, da
qualidade. (1998, p.42)
Assim, a razão adulto/criança mostra-se importante
porque, além de relacionar-se com as condições necessárias para que todas as
crianças sejam ouvidas e respeitadas em todos os seus direitos, relaciona-se
também com as próprias condições de trabalho a que são submetidos os
profissionais que atuam na área, especialmente as professoras. Embora muitos
estudos tenham-se realizado e a idéia da necessária formação específica já
esteja bastante difundida, estando contemplada na nova LDB em seu art. 62, há
ainda muito que fazer para que se supere um antigo e arraigado entendimento de
que para trabalhar com educação infantil basta ser paciente,
"criativo" e gostar de crianças. Portanto, faz-se necessário reforçar
que uma escola de qualidade precisa contar com profissionais especialmente
preparados, tanto para as questões relativas à aprendizagem e ao
desenvolvimento infantil como um todo, quanto para questões mais amplas que
envolvam conhecimentos sociológicos, filosóficos, históricos e políticos, até
para que esses profissionais consigam apreender de modo mais crítico as
condições de trabalho a que são submetidos e as suas conseqüências, para si e
para as crianças.
EDUCAÇÃO E CUIDADO
A professora cuida melhor, não é?! Porque ela
também ensina.
(mãe de
aluno de pré-escola do município de São Paulo)
Como vimos, a noção de que as crianças têm direitos
desde a mais tenra idade já parece bastante fortalecida no âmbito da legislação
brasileira, embora ainda não tenhamos políticas específicas para garantir sua
plena concretização. No caso da educação infantil, faltam especialmente
políticas de financiamento para que se amplie, quantitativa e qualitativamente,
a oferta de creches e pré-escolas.
O terceiro e último aspecto a que nos propusemos
discutir neste artigo diz respeito às relações que se dão no interior das
instituições educacionais, especialmente na pré-escola. Como tomamos o eixo dos
direitos como fundamento para discutir qualidade, não bastaria problematizar e
afirmar a necessidade de ampliação da oferta de vagas com uma razão
adulto/criança mais adequada. Estas seriam condições para se garantir
minimamente alguns dos direitos das crianças, tais como o próprio acesso à
educação infantil, bem como o direito a uma atenção mais individualizada, a um
ambiente mais seguro e quiçá mais aconchegante e estimulante, à higiene e à
saúde, por exemplo.
Entretanto, é necessário também refletir sobre a
dinâmica que ocorre na própria unidade educacional para se abarcar direitos
tais como os de proteção, afeto e amizade, a expressão dos próprios
sentimentos, o desenvolvimento da criatividade e da imaginação por parte da
criança. É com base principalmente nesses aspectos que discutiremos, a dimensão
de cuidado que, de um modo ou de outro, sempre está presente nas relações entre
adultos e crianças nas instituições de educação infantil.
A primeira e dupla pergunta a ser feita, então, é:
o que significa "cuidar" e por que esse aspecto é tão relevante para
a discussão sobre a qualidade na educação infantil?
No âmbito das pesquisas e discussões teóricas a
dimensão de cuidado, como algo relevante para a compreensão do trabalho
realizado na educação infantil, só começa a ganhar destaque no Brasil a partir
da década de 90. As formulações e reflexões a esse respeito são fortemente
influenciadas por Bettye Cadwel, psicóloga americana que cunhou o termo educare
como expressão daquilo que entende ser o "ideal" no atendimento a
crianças pequenas, ou seja, uma perfeita integração entre educação e cuidado.
No Brasil, como em outros países, a discussão do
cuidado como uma dimensão imprescindível do trabalho educativo com crianças
pequenas surge relativamente há pouco tempo, no bojo das discussões sobre a
própria história das especificidades e peculiaridades das diferentes modalidades
de atendimento à criança, a saber, as creches e pré-escolas. Para Ana Beatriz
Cerizara, é possível compreender, hoje, a discussão e a ênfase no uso desses
dois termos – educar e cuidar – a partir da análise de como surgiram e se
consolidaram as creches e pré-escolas no país: de um lado, o que havia eram
instituições de cunho mais "assistencialista", e de outro, as de
cunho mais "educativo". Contudo, o que existia não era exatamente uma
dicotomia, uma vez que ambas as modalidades de instituição sempre possuíram um
projeto educacional, embora com enfoques diversos, a depender da população
atendida; "as primeiras, com uma proposta de educação assistencial voltada
para as crianças pobres e a outra, com uma proposta de educação escolarizante
voltada para as crianças menos pobres" (1999, p.13).
Apenas em fins da década de 70, no Brasil, como
fruto de amplos movimentos sociais, ocorre uma expansão de creches e
pré-escolas. Dada essa peculiaridade, no período, as creches, em especial,
representam uma conquista, seja das crianças, seja das suas famílias. Esse
contexto fortalece a possibilidade de se vislumbrar um outro modelo de
atendimento e as creches, como também as pré-escolas e mesmo as escolas
primárias passam a sofrer sérias críticas por prestarem serviços tidos como
assistenciais (cuidados com alimentação e saúde) em detrimento do educacional.
Dessa crítica parece surgir uma espécie de consenso de que assistência é o
oposto de educação, sem se ponderar sobre a possibilidade de que ambas pudessem
se coadunar em benefício das crianças. Criticando instituições que mais
pareciam "depósitos" de crianças (Kuhlmann Jr., 1998), passou-se a
associar um atendimento que de fato era precário e que não respeitava os
direitos da criança às suas características assistenciais. Assim, é nesse
quadro que começa a ganhar força a idéia de que se até então as creches, em
especial, tinham sido equipamentos de mera assistência, era chegado o momento
de fortalecer um modelo "educacional".
O movimento, aliado principalmente ao fato de que a
educação infantil, especialmente a creche, ficou por muito tempo longe dos
currículos dos cursos de pedagogia e, como tema de pesquisas, foi relegada a
segundo plano, repercute ainda hoje, permanecendo a idéia de que a precariedade
no atendimento oferecido pelas instituições de educação infantil deve-se à sua
história.
Essa polarização, presente nos estudos sobre a
educação pré-escolar, parece atribuir à história da Educação Infantil uma
evolução linear, por etapas: primeiro se passaria por uma fase médica, depois
por uma assistencial, etc., culminando, nos dias de hoje, no atingir da etapa
educacional, entendida como superior, neutra ou positiva, em si, em
contraposição aos outros aspectos. (Kuhlmann Jr., 1996, p.31)
Analisar as instituições por esta ótica poderia
apenas encobrir a forma sob a qual, historicamente, o atendimento tem sido
ministrado às crianças de diferentes níveis socioeconômicos. Assim,
...nesta polaridade [entre o educacional e o
assistencial], educacional ou pedagógico são vistos como intrinsecamente
positivos, por oposição ao assistencial, negativo e incompatível com os
primeiros. Isto acaba por embaralhar a compreensão dos processos educacionais
da pedagogia da submissão, que ocorre em instituições que segregam a
pobreza. (Kuhlmann Jr., 2000, p.12)
Todo esse processo parece ter gerado uma
incompreensão acerca da dimensão e do significado do termo educação nas
instituições de educação infantil e provocado uma visão negativa sobre tudo
aquilo que se relaciona ao cuidado, como se este fosse sempre e necessariamente
a expressão de práticas assistencialistas.
Na tentativa de superar tal visão, Maria Malta
Campos insiste na importância de uma idéia de "cuidado" mais
abrangente, que seja incluída no conceito de "educar", ou seja, algo
que compreenda "todas as atividades ligadas à proteção e apoio necessárias
ao cotidiano de qualquer criança: alimentar, lavar, trocar, curar, proteger,
consolar, enfim, 'cuidar', todas fazendo parte integrante do que chamamos de
'educar'" (1994, p.35). Essa perspectiva, à medida que se mostra mais
abrangente e se refere a necessidades e direitos de toda e qualquer criança,
pode auxiliar na superação da idéia ainda vigente de que, para um segmento
social e etário caberia o "cuidado", entendido apenas como
"assistencialismo" e, no outro extremo, para o outro segmento caberia
um trabalho "pedagógico", este também entendido de forma limitada
porque ignorando outras necessidades e direitos. Para a autora,
...esta concepção torna mais fácil a superação da dicotomia
entre o que se costuma chamar de "assistência" e educação. Com
efeito, não só todos esses aspectos são recuperados e reintegrados aos
objetivos educacionais, como também deixam de ser considerados exclusivamente
necessários à parcela mais pobre da população infantil, e de ser contemplados
somente para as crianças menores de 2 ou 3 anos de idade. Todas as crianças
possuem estas necessidades e, se todas têm o direito à educação, qualquer
instituição que as atenda deve levá-las em conta ao definir seus objetivos e
seu currículo. (Campos, 1994, p.35)
Na mesma perspectiva, Fulvia Rosemberg (1994)
destaca o valor de tomar o conceito de cuidado por essa via mais abrangente
como fundamental para alterar práticas que, historicamente, foram sendo
construídas no âmbito das pré-escolas, em que a dimensão de cuidado parece ter
sido simplesmente abandonada, tomada como algo de menor importância ou, tal
como ocorre em outros níveis, encarada como "assistencialismo" puro e
simples.
Interessante notar que se por um lado, como já
demonstraram diversos autores, o trabalho nas creches tem-se caracterizado ao
longo da história por um "cuidar" entendido apenas como o atendimento
a necessidades de saúde, alimentação e segurança e se voltado para a população
de mais baixa renda (assistencialismo), por outro lado, o trabalho nas
pré-escolas também tem enfrentado problemas em razão desse mesmo viés acerca do
que seja educar e cuidar. Assim, as pré-escolas parecem ter-se impregnado por
formulações teóricas e prescrições pedagógicas que, especialmente na década de
80, também atingiram as séries iniciais do ensino de 1º grau: o que se deveria
fazer seria instruir as crianças e as professoras precisariam adquirir
"competência técnica" para tornarem-se "verdadeiramente"
profissionais e assim conseguirem transmitir aos alunos os conteúdos histórica
e socialmente relevantes (Carvalho, 1999). É possível supor que dadas as
dimensões com que tais prescrições adentraram as pré-escolas, todas as idéias
ou atividades explicitamente voltadas ao cuidado ou à assistência passaram a
ser vistas como irrelevantes ou, mais sério, como sinônimo de
antiprofissionalismo.
Entretanto, mesmo sendo negada ou relegada a
segundo plano, toda relação entre educadora e criança no âmbito pré-escolar é
permeada por algum tipo de cuidado, seja ele explicitado e consciente ou não,
seja ele mais ou menos adequado.
Em pesquisa realizada com professoras e um
professor das séries iniciais do ensino fundamental, Marília Pinto de Carvalho
observou o enfrentamento de um dilema por parte desses profissionais, que em
muito se assemelha ao que parece ocorrer com os profissionais da pré-escola no
que diz respeito à dimensão de cuidado em suas práticas cotidianas. Se por um
lado o cuidado é algo fortemente presente, por outro, ele é ora negado, porque
tido como antiprofissional, ora visto como algo característico ou mesmo inerente
à condição feminina, materna; assim, em ambos os casos, o cuidado é
compreendido não como uma característica ou atributo profissional típico
daqueles que trabalham com crianças, mas, antes, como característica doméstica,
situada no âmbito da vida privada e, sobretudo, associada à condição feminina.
Conforme Carvalho, no enfrentamento desse dilema:
...as categorias e quadros de referência
disponíveis [aos sujeitos da pesquisa] para legitimar as atividades de
"cuidado" estavam articuladas a uma percepção elitista, um julgamento
moral dos alunos e suas famílias, às necessidades de atendimento à pobreza, um
quadro de referências marcado pela tradição controladora e moralista de nossas
escolas primárias, mesclada com elementos das teorias da privação materna e da
educação compensatória. O "cuidado" só parecia ser legítimo, como
prática escolar, frente a crianças pobres, vindas de famílias que, por
pressuposto, não seriam capazes de atendê-las por si sós, devido a suas
carências materiais, morais e/ou culturais. (1999, p.234)
Importante, ademais, atentar para a necessária
historicidade com que o conceito de cuidado precisa ser visto para não se
incorrer nos riscos de avaliações e interpretações apressadas que, entre outras
coisas, podem levar a uma "naturalização" das relações entre cuidado
e trabalho feminino. Assim, a respeito do conceito de cuidado, Carvalho afirma
ainda que:
...não se trata de um valor universal dos seres
humanos, nem de uma tendência inata ou instintiva das mulheres, nem mesmo de
uma expressão de necessidades inerentes às crianças, pois que, se atender a
certas necessidades básicas do ser humano durante seus primeiros meses de vida
é uma questão de sobrevivência, determinada por características biológicas,
tudo o mais nessa relação é histórica e culturalmente determinado: o tempo de
duração dessa atenção, as pessoas mais indicadas para provê-la, o tipo de
relação interpessoal que se estabelece entre os envolvidos, as formas e
práticas de atendimento etc. (1999, p.58-59)
Ademais, "cuidar", bem como
"educar", não é necessariamente uma atividade positiva, havendo
variadas formas de se cuidar/educar: com diálogo e afeto ou com repressão e
agressividade, por exemplo. Para ilustrar esta idéia, vejamos o relato de uma
criança de 6 anos sobre sua experiência na escola em que realizamos a pesquisa
de campo. Falando-nos sobre o seu dia-a-dia na escola, ela conta que a
professora manda abaixar a cabeça de vez em quando, que não acha isso justo e,
em sua linguagem poética de criança, descreve a sensação decorrente desse tipo
de castigo. Quando pergunto porque não gosta do castigo, ela diz:
– Ham... porque... porque a gente fica na escuridão
lá de baixo.
Peço detalhes e pergunto o que se sente quando se
está na "escuridão lá de baixo".
– Eu fico brincando com os dedos.
– Você não sente medo?
– Não, só um que sente (rindo).
– Quem é que sente medo?
– Um pequenininho que chama Joca... ele fica
tremendo... quando ele olha pra baixo do escuro.
– E você, tem medo da professora?
– Ham, tenho!
– Medo do quê?
– Que ela me bate.
– Você acha que ela pode te bater?
– Ham, não.
– Mas ela já bateu em alguém?
– Já.
– Em quem?
– No Léo... ela deu um tapão aqui (mostra as
costas).
– Será que não foi uma brincadeira?
– Eu acho que é uma brincadeira... Mas ele chorou
que nem parou.
Pergunto, afinal, o que mais gosta na atual
professora. Ela demora para responder e finalmente diz:
– Ham... do sapato.
Pergunto se há outras coisas, se essa professora
brinca no parque, por exemplo. A menina, então, relembra uma professora
substituta que fez uma brincadeira "muito legal" de correr e descreve
a brincadeira.
Quando pergunto de qual professora mais gostou enquanto
esteve na escola, ela vai falando de cada uma delas (foram três, porque
freqüentou a escola desde o primeiro estágio) e diz, sobre a atual:
– Ela é a mais brava, parece um touro... porque ela
briga mais.
– Você tem medo de touro?
– Não .
– E da professora?
– Tenho.
A professora dessa menina, a Téia4,
foi uma das que mais nos chamou a atenção durante o período em que estivemos na
escola, pelo fato de gritar constantemente com as crianças. Entretanto, ela é
uma das professoras consideradas "muito boas" (por outras
professoras, pela diretora e por mães ao responderem questionários de avaliação
da escola) porque a maioria das crianças sob sua responsabilidade sempre saem
do terceiro estágio lendo e escrevendo. Entretanto, caberia indagar: o que mais
as crianças aprendem com as atitudes desta professora? Que dimensão de cuidado
está presente nesse tipo de relacionamento?
Parece bastante razoável afirmar que as
necessidades básicas de cuidado são diferentes entre as crianças de 0 a 6 anos,
dado que quanto mais velha mais independente do adulto a criança vai
tornando-se. Todavia, se de um modo geral a criança de 4 a 6 anos já não precisa
que lhe troquem a roupa ou que lhe dêem de comer na boca, por exemplo, não é
menos verdade que ela continue necessitando de orientação e acompanhamento para
executar essas atividades e que ela também ainda precise de amparo quando se
machuca ou quando, por exemplo, sente medo. Claro que essas
"necessidades" não são inatas e variam tanto temporal quanto
culturalmente. O tipo de amparo que se oferece a diferentes idades e a cada um
dos sexos quando a criança sente medo, por exemplo, irá depender do que o seu
grupo social valoriza ou desvaloriza (a força e a coragem ou a fragilidade e a
dependência, por exemplo) e do que, em decorrência, se espera que a criança
aprenda. Todavia, para além de necessidades social e historicamente situadas, o
que estamos tomando aqui como referência são os direitos de toda criança, hoje
consensuais e consignados em lei.
Além disso, a educação, em qualquer dos níveis em
que ela se dê, é mais do que um mero processo instrucional ou de informação,
devendo-se apresentar como meio de "atualização histórico-cultural do ser
humano" (Paro, 1999). Nessa perspectiva, a forma também é conteúdo e
portanto o "cuidado" diz respeito também à maneira de os adultos se
relacionarem com as crianças na escola, sendo necessário, pois, tomar a própria
criança como centro para a organização do processo educativo. Assim,
...tomar a criança como ponto de partida exigiria
compreender que para ela, conhecer o mundo envolve o afeto, o prazer e o
desprazer, a fantasia, o brincar e o movimento, a poesia, as ciências, as artes
plásticas e dramáticas, a linguagem, a música e a matemática. Que para ela, a
brincadeira é uma forma de linguagem, assim como a linguagem é uma forma de
brincadeira. (Kuhlmann Jr., 1999, p.65)
Entretanto, exemplos como os da professora Téia
parecem indicar que não há muita clareza sobre o que, como e quando as crianças
"aprendem", ou sobre o que, como e quando as professoras devem e
podem "ensinar". Isto talvez explique, em certa medida, esta profunda
cisão entre cuidar e educar e uma preocupação exacerbada com este último
aspecto em seu sentido apenas instrucional. Assim, além do exemplo mencionado,
é muito comum observar professoras queixando-se de não terem tido um bom dia de
trabalho porque, em razão de estarem cansadas, por exemplo, "apenas"
deixaram as crianças brincarem, ou "apenas" contaram uma história
etc. Também é comum observar professoras que, após a realização de um jogo ou
brincadeira muito rica em possibilidades de reflexão para as crianças,
sentem-se na obrigação de "sistematizar" a aprendizagem e, então,
"completam" a atividade oferecendo folhas com exercícios que, em
geral, servem apenas para treinar a motricidade e aquietar a meninada. O pior,
entretanto, ocorre quando a professora, no afã de "ensinar", impõe
disciplinas rígidas, exigindo das crianças uma organização que transcende as
suas possibilidades. E, para tanto, muitas vezes, vale-se de castigos, de
exposição das crianças a situações constrangedoras e intimidatórias, tudo em
nome da "aprendizagem".
Para concluir, resta enfatizar que não se trata
simplesmente de criticar professoras por esta ou aquela atitude, embora
práticas como as descritas sejam inaceitáveis. É preciso destacar que, como
observou Carvalho (1999) em sua pesquisa, na maioria das escolas as professoras
encontram-se praticamente sozinhas na realização de seu trabalho. Há
pouquíssimo investimento na formação em serviço e no âmbito da própria unidade
escolar. Como reflexo, em parte, das políticas que reforçam o individualismo e
a idéia de que cada um é isoladamente responsável pela qualidade do seu
trabalho, o que parece predominar é uma enorme solidão. Pouco se tem feito,
além da denúncia sobre a "falta de qualificação" ou de
"competência técnica" para que as próprias professoras reflitam
acerca de suas práticas, problematizando-as e buscando meios coletivos para que
o seu trabalho possa sofrer as transformações necessárias e desejadas.
Mas independentemente de processos coletivos de
discussão e reflexão realizados pelas próprias professoras de educação
infantil, a situação atual faz crer na necessidade de inclusão, seja nos
currículos dos cursos de formação inicial, seja nos programas de formação em
serviço, de conteúdo que garanta o conhecimento acerca do que seja a dimensão
de cuidado da criança pequena em suas diferentes nuanças e perspectivas e,
sobretudo, acerca de seus direitos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diversas são as possibilidades para se discutir,
avaliar ou propor padrões de qualidade na educação infantil. O que se pode
concluir, entretanto, com base na discussão sistematizada neste artigo, é que
muito se tem a fazer para que a escola pública de educação infantil – ou a
pré-escola, porque dela tratamos com maior ênfase – ofereça melhores condições
de atendimento. Há escolas e profissionais muito empenhados, criando
alternativas interessantes de trabalho, a despeito da falta de investimento
estatal e de toda sorte de dificuldades. Todavia, ainda que o compromisso
profissional de cada educadora(or) seja de fundamental importância, é preciso insistir
que ganhos qualitativos devem ocorrer de maneira generalizada e, para tanto, as
ações – movimentos, reivindicações – devem ter um caráter mais coletivo.
Finalmente, vale dizer que o coletivo pode ser entendido como um corpo formado
também pela sociedade civil, em especial pelas mães (famílias) das crianças. A
história já mostrou que sua participação é decisiva na conquista de direitos
educacionais.
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Recebido em: março 2002. Aprovado para publicação
em: abril 2002
Este artigo apresenta reflexões oriundas de
dissertação de mestrado, defendida em abril de 2001, na Universidade de São
Paulo, sob o título: Possibilidades de participação familiar e qualidade na
educação infantil.
*
Este artigo foi escrito em 2002 (N. do E.)
1
Baseio-me em sua exposição oral durante o 2º Congresso Paulista de Educação
infantil – Copedi –, em Águas de Lindóia (SP), em outubro de 2000.
2
Esse plano transformou-se no Pl. n. 4.155/98. O plano do governo entrou no
Congresso Nacional como Pl n. 4.173/98. Ambos foram substituídos pelo parecer e
substitutivo do Relator Deputado Federal Nelson Marchezan. Em janeiro de 2001,
esse substitutivo foi transformado em lei com alguns vetos do Presidente da
República.
3
As creches municipais de São Paulo não têm as mesmas condições das Emeis,
especialmente no tocante à formação de seus profissionais.