Blog “Educação, Didática,
Pedagogia e Andragogia”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.
1: A RECEPÇÃO MUDA TUDO: SOBRE A
EDUCAÇÃO DO OLHAR NA ESCOLA
1.1 . LIÇÕES SOBRE O “OLHAR”
“Todo conhecimento comporta o risco do erro e da
ilusão.” Edgar Morin.
Ao iniciar este texto, apresentamos um desafio.
Olhando para o quadro acima, podemos afirmar que o que pensamos que vemos é realmente
o que vemos? É possível afirmar que não há erro ou ilusão na interpretação do
nosso olhar? O que vemos no quadro acima? Será um recipiente de ferro (ou de
outro material) contendo legumes e hortaliças? Têm certeza? Por favor, ponham
esta página de ponta-cabeça e observem novamente a figura. E então?
Como vocês puderam observar, o quadro acima
reproduz um recipiente com legumes e hortaliças, mas também reproduz a figura
de um homem – depende do ângulo de onde observamos a figura, depende do ponto
de vista do nosso olhar.
Se olharmos mais uma vez para a figura, agora
sabendo que há a imagem de um homem, nosso olhar será imediatamente atraído
para os dois pontos que representam os olhos, e deixaremos de ver os legumes e
hortaliças ou de apenas vê-los como parte de um conjunto de alimentos. Eles
serão, a partir desse novo olhar, partes constituintes de uma figura de homem.
Tudo isto porque o nosso olhar focaliza um ponto especial – os olhos. Os
legumes continuam ali, expostos ao nosso olhar, mas não os registramos mais
conscientemente.
Após as observações acima, é possível supor que:
·
nem tudo
o que pensamos ver, realmente vemos;
·
nem
sempre temos a consciência da visão de tudo o que olhamos;
·
nem
sempre vemos a totalidade do que é objeto do nosso olhar;
·
nem
sempre esgotamos nossas possibilidades de olhar um objeto para criar conceitos
sobre ele;
·
nem
sempre refletimos sobre o nosso ato de olhar.
Com esta constatação, concluímos que olhar é um ato
nada banal, na verdade, bastante complexo e, por isso mesmo, necessitando ser
analisado com profundidade. Especialmente, se colocamos a questão no âmbito
educacional e, mais especificamente, no âmbito escolar.
Refletir sobre o olhar é a proposta que trazemos
para este momento. E dentro desta proposta, queremos considerar os vários
significados do olhar. Entre eles, os que apresentamos a seguir:
Eu vi
o cheiro do boi.
Eu vi
cheiro de pasto
maduro, crestado, amarelado.
Trecho do poema “Evém boiada!”,
de Cora Coralina.
De uma
praia do Atlântico
Se o olhar visse curvo,
como se diz que é o espaço,
olhando a sudoeste
de meu atual terraço, (...)
João Cabral de Melo Neto
Assim como os poetas citados, entendemos o olhar
como um modo de ver que vai além do olhar primário, do olhar que só alcança as
coisas imediatas e próximas. Entendemos que o ato de olhar envolve também o
resgate de lembranças sinestésicas que estão guardadas em nosso interior.
Assim, olhar é também usar os olhos da alma, do desejo, do sonho, da fantasia,
da sensibilidade, porque olhar é ver com o “corpo todo”. Assim pensamos porque
acreditamos, como Lorca, que “nos olhos se abrem / infinitas veredas”.
Mas que em momento algum se pense que estamos
defendendo a idéia de um olhar romântico, ingênuo, acrítico, pois se
acreditamos no ato de olhar que se volta para o interior, é porque consideramos
que isto vai nos ajudar a olhar criticamente para o exterior. Com um múltiplo
olhar – enriquecido pelos nossos diferentes sentidos – poderemos refletir
melhor sobre as coisas que nos são mostradas, poderemos observá-las sob vários
ângulos e, com isto, identificar as intenções que subjazem nas exposições que
ocorrem nos espaços sociais.
Mas como alcançar esta competência? Como
desenvolver a habilidade de ver criticamente e também com emoção? Só há uma
forma: educando o olhar. E para educá-lo, precisamos, inicialmente, pensar
sobre algumas questões, a saber:
1. Como se realiza, cientificamente, o ato de
olhar?
2. Como identificar, nas interações sociais,
as intenções implícitas no aparentemente inocente ato de expor imagens ao nosso
olhar?
3. Como relacionar, ao ato de olhar, as
questões referentes à estética e à ética?
4. Como desenvolver a capacidade de olhar?
5. Como levar todas estas reflexões para o
cotidiano da escola?
1.2 . A ARTE DE EDUCAR O OLHAR
Como educar o olhar? Como torná-lo capaz de
perceber significados e construir relações? Como desenvolver a capacidade de
ver estética e eticamente as imagens que nos circundam? Cultivando a arte de
ver.
Pensemos, primeiramente, em desenvolver nossa
“visão divergente” que, em Pedagogia, conforme nos informa Yunes e Agostini, “representa uma visão
múltipla das coisas, uma visão não bitolada ou enquadrada”. Uma visão que nos
capacita a usufruir esteticamente as imagens e a usar a criatividade nas
diferentes situações da vida.
Segundo os autores citados acima, a escola não
estimula nem desenvolve nas crianças a visão divergente.
Pelo contrário, leva-as para a ‘visão convergente’,
a visão domesticada, centrada, unilateral e massificada, típica do adulto
‘normal’, ‘bem-adaptado’, conformista, conservador, sem brilho, sem cor e sem
caráter. (Yunes Agostine, 1998)
Embora não pretendamos, agora, discutir a relação
olhar crítico X escola, fica registrada a observação acima para posterior
retomada neste trabalho.
Pensemos agora sobre o nosso “olhar divergente”.
Até que ponto nós o temos cultivado? Até que ponto temos permitido que nossos
olhos se abram para “infinitas veredas”?
Ainda segundo Yunes e Agostini, o ser humano é
múltiplo, dispõe de várias maneiras de perceber o real ou a vida. Os aspectos
afetivos não estão dissociados do intelecto e da inteligência (...)”. Uma das
formas de educar o olhar, portanto, é permitir que nossas emoções participem da
nossa visão cotidiana das coisas, ou seja, exercitando cada vez mais a nossa
“visão divergente.
E, para tanto, podemos nos valer das artes:
literatura, pintura, escultura, música, fotografia, dança, dramatização e todas
as outras artes que com elas se entrelaçam.
Segundo Costa, a arte penetra em nós através da
porta da sensibilidade, mantendo aberto esse canal com nossa natureza mais
instintiva e – por que não? – animal. A cada emoção ou prazer que resulta do
contato com o belo, nossos sentidos se renovam e se apuram num processo
infindável de aprofundamento e recriação. A cada momento de arte, nos tornamos
mais aptos à captação da beleza do mundo e de seus significados.
A arte se opõe ao mergulho no individualismo
egoísta. Trabalha o incrível paradoxo de, tendo suas raízes na subjetividade e
na interioridade, só se realizar em comunicação com o outro e com o mundo. Exige
eco e comunicação, exige diálogo e controvérsia. Assim, mantém livres nossos
canais de comunicação com o outro, ao mesmo tempo em que aprimora a consciência
que temos de nós mesmos. É fonte inesgotável de interpretação e sentido. Por
mais que nos detenhamos em sua observação, decifração e entendimento, mais nos
confrontaremos com novas aparências e significações. E mesmo mantendo laços
estreitos com seu tempo e seu espaço, a arte atravessa a história e se
apresenta virgem a novas interpretações.(Costa, 1999)
Segundo De Masi (2000), um dos momentos que
assinalaram a passagem da nossa condição de animal a homem foi aquele em que,
no nosso processo evolutivo, pudemos conceituar o belo. Desde os primeiros
desenhos nas cavernas, o homem utilizou a capacidade estética para registrar as
suas impressões do mundo, diferenciando-se dos outros animais, conquistando a
sua condição humana e a felicidade. Isto porque, segundo o autor, “entre todas
as formas de expressão humana, a estética é aquela que, mais do que qualquer
outra, é responsável pela nossa felicidade”. (De Masi, 2000)
Associando as idéias de Costa (1999) e de De Masi
(2000), entendemos que a arte nos humaniza e, ao mesmo tempo, nos proporciona
uma sensibilidade tão intensa que pode despertar nossas emoções mais selvagens,
criando um feedback para múltiplas renovações do homem. Educando o nosso
olhar através da arte, estaremos sempre ratificando a nossa condição humana.
Nosso olhar, entretanto, não é apenas estimulado
por imagens que produzem prazer estético ou só prazer estético. Conforme já foi
observado neste texto, vivemos um tempo de saturação de imagens.
Somos, a todo momento, levados a enfrentar novos
desafios, que nos exigem uma visão mais crítica e abrangente dos recursos que
nos cercam, imprimindo uma nova ordem ao tempo e ao espaço em que vivemos.
(Caboclo, 1995).
São muitas as mídias que veiculam imagens e
mensagens. Precisamos aprender a olhá-las em suas especificidades,
interpretá-las criticamente e usufruir dos seus benefícios.
Segundo Kellner, precisamos desenvolver um
alfabetismo crítico em relação à mídia e construir competências para a leitura
crítica de imagens. Para ele,
Ler imagens criticamente implica aprender como
apreciar, decodificar e interpretar imagens, analisando tanto a forma como elas
são construídas e operam em nossas vidas quanto o conteúdo que elas comunicam
em situações concretas. (Kellner, 1995)
Analisando as imagens e mensagens veiculadas pela
publicidade, Kellner considera que esta exerce uma ação pedagógica sobre as
pessoas, ensinando-lhes o que precisam e devem desejar, pensar e fazer para
alcançar o prazer e a felicidade. Para ele, a publicidade veicula e inculca nos
indivíduos uma visão de mundo, uma ideologia de vida, valores e comportamentos
que aparentemente trazem satisfação imediata.
Para neutralizar a influência ideológica da publicidade
e escapar dos apelos do consumo precisamos, segundo o autor, desenvolver
“competências emancipatórias”. Precisamos, ainda, “compreender como os textos
culturais funcionam, como eles influenciam e moldam” nossos comportamentos.
É importante frisar que não consideramos os
indivíduos totalmente desarmados para o “ataque” da mídia. Sabemos que é grande
o poder de influência das imagens e mensagens veiculadas pela publicidade e
pelos diferentes veículos de comunicação, mas também acreditamos, como Certeau
(1995), que é difícil estabelecer o grau de influência que elas exercem sobre
os indivíduos, uma vez que não sabemos ao certo as maneiras de uso adotadas
pelos consumidores em relação aos produtos culturais oferecidos. Estes
conhecimentos, contudo, não nos isentam de incentivar a reflexão e a
conscientização acerca da influência da mídia e das estratégias que podemos
articular para neutralizar essa influência.
Também é importante observar que vivemos em uma
sociedade do espetáculo, e que nessa sociedade todos os assuntos são
apresentados como se fizessem parte de um show. Já não é fácil discernir o real
do ficcional. Amor, morte, guerra, futebol, tragédia, comédia, tudo faz parte
de um espetáculo cotidiano que não tem trégua. E nesse espetáculo, muitas vezes
perdemos a capacidade de discernir criticamente os fatos. As coisas, segundo
Chiavenato (1998), “passam a ser o que aparentam. E aparentam ser pela imagem
que transmitem”.
Muitas são as imagens e elas nos transmitem a
ideologia da mercadoria: tudo é consumível e deve ser consumido. Segundo
Lefebvre (1991), essa ideologia “substitui o que foi filosofia, moral,
religião, estética”. Nada mais importa a não ser realizar os desejos
despertados pelas mensagens de consumo. Consumo de objetos, de drogas, de sexo,
de ilusões e de vidas.
Como olhar para essas mercadorias, como assistir ao
grande espetáculo da sociedade (e participar dele!) e como usufruir dos bens
culturais sem perder a capacidade de fazer leituras críticas sobre os fatos e,
a partir delas, realizar intervenções éticas?
Acreditamos que um caminho é não acreditar sempre
no que nos mostra o nosso olhar, seja sob que ângulo estejamos “olhando” os
fatos. É preciso sempre criar outros ângulos, refletir sobre as imagens que
observamos a partir desses novos ângulos e entender que nada pode ser olhado
maniqueisticamente: o bem e o mal (e o que é bem para uns nem sempre o é para
todos) estão em todas as coisas e precisamos saber usufruir de cada coisa
aquilo que ela apresenta de construtivo. Nesse sentido, o que primeiro
precisamos fazer é procurar conhecer tudo o que nos cerca, desvendar seus
mistérios, penetrar em suas fortalezas, derrubar seus muros.
Começamos, neste trabalho, recordando o mecanismo
do olhar. Verificamos como esse mecanismo é aproveitado e explorado pela
propaganda e pela mídia. Refletimos sobre a importância das Artes e da
consciência crítica em nossas vidas. Compreendemos que são múltiplos os meios
de veicular imagens e que, por isso, múltiplas devem ser nossas
estratégias de interpretação.
Não podemos esquecer, também, da importância que se
deve dar à observação dos diferentes modos de veicular ideologias, valores,
estética e ética utilizados pelo cinema, pelo teatro, pelo rádio, pela
televisão, pela internet, pelos jornais, pelas revistas, pelas músicas, pelas crônicas,
pelos romances, pelos poemas, pelas charges, pelos quadrinhos, pelos
comerciais, pelas comidas, pelos livros didáticos, pelos mapas e atlas, pelas
disciplinas escolares, e ainda pelos pregadores religiosos, pelos artistas,
pelos educadores, pelos políticos. Somente olhando-os de forma crítica é que
poderemos identificar o lugar onde eles se colocam para veicular suas mensagens
e que relação esses lugares e essas mensagens estabelecem com os nossos
conceitos de gênero, raça, cidadania.
Por fim, precisamos descobrir as formas de
desconstrução das estratégias usadas por esses veículos e indivíduos, para que
possamos, quando necessário, enfraquecer seus discursos e fortalecer discursos
mais compatíveis com um pensamento planetário de solidariedade e de valorização
humana.
1. 3. COMO PROMOVER E PRATICAR A EDUCAÇÃO DO OLHAR
E DO PENSAR NA ESCOLA?
Segundo Coutinho (1998),
Cada lugar tem a sua maneira própria de ser, de se
constituir, de apresentar e de se representar. A escola é um lugar como outro
qualquer e também tem suas feições. Mas uma de suas características básicas é a
de poder metamorfosear-se numa porção de outros lugares. Assim, a sala de aula
pode vir a ser um palco de teatro ou uma sala de cinema. Tudo fica a depender
da capacidade criadora de professores e alunos.
A escola pode ser ainda outros lugares. O lugar da
utilização e da produção de vídeos; o lugar da leitura, análise e produção de
jornais, revistas, poemas, charges. A escola é o espaço privilegiado para a
reconstrução dos discursos e das imagens veiculadas nos diferentes espaços
sociais.
E mais. A escola é o lugar privilegiado para
promover a educação. E não podemos confundir educação com repasse de
informações. As informações estão em todos os lugares e são tantas que a escola
nem pode ter a pretensão de transmiti-las. Não pode, principalmente,
desperdiçar o tempo e o espaço de que dispõe para educar. E educar, para nós,
corresponde ao conceito adotado por Morin (1999):
Educar é estar mais atento às possibilidades do que
aos limites. Estimular o desejo de aprender, de ampliar as formas de perceber,
de sentir, de compreender, de comunicar-se. Apoiar o estado de prontidão para
aprender dentro e fora da escola, em todos os espaços do nosso cotidiano, em
todas as dimensões da vida,. estar atento a tudo, relacionando tudo, integrando
tudo. Conectar sempre o ensino com a pessoa do aluno, com a vida do aluno, com
a sua experiência.
Educar é procurar chegar ao aluno por todos os
caminhos possíveis: pela experiência, pela imagem, pelo som, pela representação
(dramatizações, simulações), pela multimídia. É partir de onde o aluno está,
ajudando-o a ir do concreto ao abstrato, do imediato para o contexto, do
vivencial para o intelectual, integrando o sensorial, o emocional e o racional.
O emocional é um componente fundamental da compreensão e do ensino. (Morin,
1999)
Tendo como suporte as falas de Coutinho e Morin,
pretendemos enfatizar a importância da escola no processo da educação do olhar,
que – como já deve ter ficado evidente – foi, em alguns momentos, a metáfora
que usamos para falar de uma educação escolar crítica, atenta, interligada aos
outros espaços educacionais, dispondo de professores aptos a “utilizar
pedagogicamente as tecnologias na formação de cidadãos que deverão produzir e
interpretar as novas linguagens do mundo atual e futuro”.
Como última sugestão para desenvolver um novo olhar
sobre a educação, trazemos a contribuição de Gadotti , que propõe a
ecopedagogia:
A ecopedagogia pretende desenvolver um novo
olhar sobre a educação, um olhar global, uma nova maneira de ser e de estar
no mundo, um jeito de pensar a partir da vida cotidiana, que busca sentido a
cada momento, em cada ato, que ‘pensa a prática’(Paulo Freire), em cada
instante de nossas vidas, evitando a burocratização do olhar e do
comportamento. (Gadotti,
2000)
Não podemos nos conformar em ser ou em educar
pessoas para se tornarem indivíduos “bem-adaptados”, passivos, manobráveis,
burocratizados. Precisamos cultivar e incentivar nossos alunos a cultivar não
apenas a visão divergente, como também, e principalmente, o espírito
divergente.
Não podemos também, e isto é fundamental, fazer o
discurso do olhar divergente e praticar o olhar convergente, conformista,
conservador e sem brilho, durante as nossas ações cotidianas na escola.
Precisamos mudar os ângulos do nosso olhar em relação aos nossos colegas, aos
nossos alunos e ao nosso trabalho. Focalizar as fóveas não apenas nos anjos ou
apenas nos demônios, mas atentar para o que fica relegado a uma visão
periférica.
Talvez refletindo mais sobre a arte de ver e
procurando exercitá-la a todo o momento, não soframos mais aquela dor sem
explicação, aquela sensação de fracasso que muitas vezes acompanham o nosso
trabalho. Dor e sensação que talvez sejam provocadas pelo registro inconsciente
que fazemos da decepção estampada nos rostos dos nossos alunos. Um registro que
as nossas fóveas não vêem, mas que os nossos bastonetes conduzem para as
profundezas da nossa mente.
Para encerrar, plagiando Che Guevara, diríamos que
é necessário divergir, mas sem jamais perder a ternura. Que, sem perder o
prazer estético de produzir e admirar o belo, sejamos sempre praticantes e
defensores da ética em todas as situações de interação com os homens e com a
natureza.
1.4 . O QUE É PENSAR?
Um texto que consideramos excelente para
compreender a importância de se pensar nos é o oferecido por Rubem Alves e se
intitula “As Receitas”(2000).
Quando eu era menino, na
escola, as professoras nos ensinaram que o Brasil estava destinado a um futuro
grandioso porque as suas terras estavam cheias de riquezas: ferro, ouro,
diamantes, florestas e coisas semelhantes. Ensinaram errado. O que me disseram
equivale a predizer que um homem será grande pintor por ser dono de uma loja de
tintas. Mas o que faz um quadro não é a tinta: são as idéias que moram na
cabeça do pintor. São as idéias dançantes na cabeça que fazem as tintas
dançarem sobre a tela...
Minha filha me fez uma
pergunta: “O que é pensar?”. Disse-me que esta era a pergunta que o professor
de Filosofia havia proposto à classe. Pelo que lhe dou os parabéns. Primeiro,
por ter ido diretamente à questão essencial. Segundo, por ter tido sabedoria de
fazer a pergunta, sem dar a resposta. Porque se tivesse dado a resposta, teria
com ela cortado as asas do pensamento. O pensamento é como a águia que só pode
alçar vôo nos espaços vazios do desconhecido. Pensar é voar sobre o que não se
sabe. Não existe nada mais fatal para o pensamento do que o ensino das
respostas certas. Para isso existem as escolas: não para ensinar as respostas,
mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra
firme. Mas somente as perguntas permitem entrar pelo mar do desconhecido.
E, no entanto, não
podemos viver sem respostas. As asas, para o impulso inicial do vôo, dependem
de pés apoiados na terra firme. Os pássaros, antes de saberem voar, têm que
aprender a caminhar sobre a terra firme.
Terra firme: as milhares
de perguntas para as quais as gerações passadas já descobriram as respostas. O
primeiro momento da educação é a transmissão deste saber. Nas palavras de
Roland Barthes: “Há um momento em que se ensina o que se sabe...”. E o mais
curioso é que este aprendizado é justamente para nos poupar da necessidade de
pensar.”(...) Aperto a tecla moqueca. A receita aparecerá no meu vídeo
cerebral: panela de barro, azeite, peixe, tomate, cebola, coentro, cheiro
verde, urucum, sal, pimenta, seguidos de uma série de instruções sobre o que
fazer. Não é coisa que eu tenha inventado. Foi-me ensinado. Não precisei pensar.
Gostei. Foi para a memória. Esta é a regra fundamental desse computador que
vive no corpo humano: só vai para a memória aquilo que é objeto do desejo. A
tarefa primordial do professor: seduzir o aluno para que ele deseje e,
desejando, aprenda. E o saber fica memorizado de cor – etimologicamente, no
coração – à espera de que o teclado desejo de novo o chame do seu lugar de
esquecimento.
Memória: um saber que o
passado sedimentou. Indispensável para se repetir as receitas que os mortos nos
legaram. E elas são boas. Tão boas que nos fazem esquecer que é preciso voar.
Permitem que andemos pelas trilhas batidas. Mas nada têm a dizer sobre mares
desconhecidos. Muitas pessoas, de tanto repetir as receitas, metamorfosearam-se
de águias em tartarugas. E não são poucas as tartarugas que possuem diplomas
universitários. Aqui se encontra o perigo das escolas: de tanto ensinar o que o
passado legou – e ensinar bem – fazem os alunos se esquecer de que o seu
destino não é o passado critalizado em saber, mas um futuro que se abre como
vazio, um não saber que somente pode ser explorado com as asas do pensamento.
Compreende-se, então, que Barthes tenha dito que, seguindo-se ao tempo em que
se ensina o que se sabe, deve chegar o tempo quando se ensina o que não se
sabe. (Alves, R., 2000: 77)
Ousando conversar com o texto, logo de início,
Alves nos mostra quão simplista e equivocado pode ser o discurso da escola
quando omite a importância do processo de construção e prevê sucesso sem
laboração. O processo de pensar requer um exercício constante de investigação e
análise, portanto, que não está pronto, concretizado a priori.
Ele enfoca, também, a contradição do discurso que
acaba por nos induzir a erro de interpretação, quando nos fala que:
... não é por ser dono de uma casa que vende tintas
que nos tornaremos pintores, mas, sim, quando as idéias dançantes na cabeça do
pintor derem forma à tela, através da utilização das tintas para
expressá-las (Alves, R., 2000: 77)
levando-nos a perceber que nem sempre o óbvio é ou
está óbvio, pois, assim como acontece com as tintas, o mesmo se dá em relação
às demais idéias que compõem o imaginário social, político, econômico,
educacional..., pois são as idéias – o bem mais precioso produzido
pelos indivíduos - que constroem o mundo que temos e, ainda, o que queremos
ter. Einstein já dizia que o importante não é dar boas respostas, mas, sim,
fazer grandes perguntas. A partir desse pressuposto, cabe-nos pensar se estamos
oferecendo situações que levem o sujeito a pensar e expressar suas idéias e
conjecturas sobre os fatos e os dados apresentados, no seu cotidiano,
aprendendo a lê-lo criticamente, questionando e propondo situações de superação
de suas problemáticas existenciais.
A seguir, nos propõe a crucial pergunta:
O que é pensar?”, dizendo que o professor de
filosofia teve a genial sensibilidade de não respondê-la, pois se o fizesse,
teria cortado as asas do pensamento, não permitindo que alçasse vôo sobre os
mares do desconhecido, exercitando o pensamento (Alves, R., 2000: 78).
Cabe-nos perguntar, se estamos possibilitando o
pensar sobre as coisas, os objetos, os fatos e as situações ou se estamos
apenas propondo reproduções, transmitindo informações já elaboradas,
destituídas de sentido, implicando, inclusive, a perda do significado original.
Se, por um lado, pensar requer que tenhamos
conhecimentos construídos anteriormente para nos dar sustentação para caminhar,
esses saberes não nos podem aprisionar constituindo-se em verdades absolutas. Ao
contrário, eles devem propiciar que possamos reelaborar permanentemente nossos
pontos de vista, acompanhando a “história do presente”, mas sem perder a
dimensão do olhar prospectivo (visão de futuro).
Por outro lado, pensamos por cadeia de idéias e
associações múltiplas, tentando estabelecer conexões de sentido, usando alguns
referenciais mais ou menos estáveis, aos quais recorremos, de memória, para
conhecer mais e melhor. Daí a relevância do exemplo da moqueca do texto de
Rubem Alves que enfatiza a memória de “longa duração”, termo usado pela
professora pesquisadora Elvira Souza Lima para definir aquela memória que,
plena de sentido, é inesquecível, em nada se confundindo com a memória de curta
duração ou memorização.
A “memória de sentido”, como decidimos denominá-la,
não se esgota em si mesma, servindo como base para a redimensão do próprio
pensamento.
Isto nos leva a afirmar que não é a quantidade de
informações “memorizadas” que determina a constituição do conhecimento, mas a
forma como lidamos com estas informações – sendo águias ou tartarugas – como
sugere Rubem Alves.
Ainda bem que a história não pode parar o curso do
tempo e no tempo tudo pode se transformar, possibilitando a existência de uma
nova ordem, muitas das vezes mais produtiva e que exige mais que perfeição
milimétrica; mas que acaba por proporcionar situações que nos permitem
privilegiar a criatividade, o talento, através da capacidade ética de
relacionamento interpessoal satisfatório, contribuindo para a construção de um
mundo melhor para se viver.
Isto nos remete à música cantada pela cantora
Simone, intitulada “Como Será o Amanhã?”, de Gonzaguinha, que nos mostra a
possibilidade de construir um espaço-tempo, voltado para a superação das
relações adversas existentes no hoje, conhecendo, entendendo, pensando,
refletindo e avaliando as mesmas, buscando as razões que lhe deram sustentação
de existência no passado, para poder compreender suas causas e efeitos, podendo
sempre propor novos caminhos, a serem trilhados por quem acredita no amanhã,
sabendo que estão sujeitas à transitoriedade dos fatos, dos valores, das
práticas.
Quando se acredita que o ser humano é capaz de
sentir felicidade e de demonstrá-la ao fazer as atividades mais simples da
vida, fica registrado, de modo inequívoco, que possui um coração simples, puro
e receptivo às coisas que lhe possibilitam alçar vôos de imaginação, criar
fantasias e quem sabe, um dia, transformar seus sonhos, sua utopia, em algo
concreto, a partir de suas crenças em torná-los realidade.
Em contrapartida, se fizermos como nos sugere a
fábula do elefantinho, que visão de homem e de mundo estaremos querendo formar?
Cabe-nos, aqui, pensar sobre a sua mensagem.
Um treinador de circo consegue manter um
elefante aprisionado, porque usa um truque muito simples: quando o animal ainda
é ‘criança’, ele amarra uma de suas patas em um tronco muito forte. Por mais
que tente, o elefantinho não consegue soltar-se. Aos poucos, vai se acostumando
com a idéia que o tronco é mais poderoso que ele. Quando adulto, e dono de uma
força descomunal, basta colocar uma corda no pé do elefante e amarrá-la em um
graveto que ele nem tenta libertar-se, porque se lembra que já tentou muitas
vezes e não conseguiu. Assim como, desde criança, nos acostumamos com o poder
daquele tronco, não ousamos fazer nada. Sem saber que basta um simples gesto de
coragem para descobrir toda a nossa liberdade. (Paulo Coelho)
Será educar sinônimo de adestrar? Será educar
sinônimo de treinar? Ou de condicionar? Ou de subjugar? Algumas práticas
pedagógicas parecem acreditar que sim. Mas a Pedagogia para o Amanhã insiste
que não. Por ela apostar, radicalmente, na ampliação permanente do olhar,
define educar como o processo dinâmico, contínuo, dialógico e dialético de
construção de conhecimentos pertinentes, plenos de significado e sentidos, em
constante transformação, no tempo-espaço-histórico-social, em busca sempre do
aperfeiçoamento da existência humana.
Não é necessário que haja, apenas, uma grande
quantidade de informações para se fazer um indivíduo apto a desenvolver sua
própria aprendizagem. Não será, também, trazendo-o preso a amarras, mesmo que
já não se façam fisicamente presentes, que vamos garantir sua melhor
performance. É indispensável que se comprometa consigo mesmo, avaliando suas
funções sociais e, com seriedade, busque defender conceitos que lhe dêem
condição de exercer sua cidadania, comprometendo-se, íntegro e cônscio da
necessidade de sua participação social, frente à formação de outros cidadãos.
Comungamos com Paulo Freire, quando nos afirma que
o que mais o seduz é a beleza da pessoa humana brigando para ficar melhor.
Urge que nos conscientizemos da importância de
sermos docentes, mas não apenas docentes, mas principalmente seres humanos,
pois só assim poderemos facilitar a aproximação dos demais, identificando-nos
com eles, ajudando-os a descobrir sua singularidade, oferecendo situações de
aprendizagem que superem a simples transmissão de conhecimentos.
... É preciso reaprender a linguagem do amor, das
coisas belas e das coisas boas, para que o corpo se levante e se disponha a
lutar. Porque o corpo não luta pela verdade pura, mas está sempre pronto a
viver e a morrer pelas coisas que ele ama. Na sabedoria do corpo, a verdade é
apenas um instrumento, um brinquedo do desejo. (Rubem Alves)
Devemos, pois, oferecer atividades em que possam
falar e ouvir a respeito das realidades próprias, próximas e distantes, podendo
lê-las e relê-las, através de suas falas e silenciamentos, ou seja, da
polifonia produzida pelos diferentes parceiros que se inter-relacionam, de
forma direta ou indireta, lidando e criando saberes, em suas trocas de
experiências, em suas reflexões, compondo e propondo novas questões que os
levem a perceber a necessidade de estar sempre presentes no processo dinâmico
da construção do conhecimento, pois sabemos que
O futuro não é uma coisa escondida na esquina.
O futuro a gente constrói no presente.” (Paulo Freire)
Assim, o professor precisa ter:
a) humildade
para estar aberto às questões do hoje (de cunho os mais variados), às mudanças
e novas propostas que permitam entender o “aqui e agora”, através da certeza do
seu inacabamento e de suas possibilidades para propor e tecer novos paradigmas,
que ajudem a compor soluções plausíveis, melhorando a qualidade de vida em
sociedade e criando, assim, um novo amanhã;
b) respeito por
seu pares, nas relações ética e estética, pelas descobertas científicas e
tecnológicas (que compõem o patrimônio da humanidade), bem como pelas
diferentes culturas, hábitos, costumes, valores, modos de se relacionar,
atitudes diferenciadas (nem melhores, nem piores umas das outras), mas
reconhecendo que são apenas diferentes entre si e satisfatórias para aqueles
que delas participam;
c) confiança na
potencialidade de todo ser humano de construir o seu próprio conhecimento,
sabendo-se num processo dinâmico de construção de saberes das mais diferentes
ordens, desde as pessoais até as coletivas, por se entender um ser
histórico, capaz de fazer história, uma história que o antecede e que lhe vai
suceder, crendo no seu processo de aprendizagem desde o seu nascimento até o
momento de sua morte.
Portanto, deve ser e estar consciente da
importância e da necessidade de sua atuação para compor um novo amanhã,
comprometendo-se e fazendo parceria na construção de uma sociedade mais justa e
eqüânime de oportunidades de realização a todos que nela convivem,
indagando-se, a cada momento,
Por que nossa educação é tão embrutecedora e cega,
se nossas crianças são tão ricas?
Por que a humanidade teme tanto a espontaneidade,
se a atitude espontânea conduz tão rapidamente ao crescimento responsável?
Por que nos falta confiança no futuro, se forças
sociais intensas e construtivas podem ser liberadas no indivíduo através da
aceitação de alguns poucos princípios básicos? (Carl R. Rogers)
Realmente, precisamos saber exercitar o pensamento.
Pensar e incentivar a pensar para poder contribuir para a transformação e a
libertação, pois cremos que alguns pontos, assinalados por grandes teóricos da
atualidade, poderão iluminar nossas visões para compreender as práticas
vivenciadas na realidade da escola. Neste sentido, talvez seja possível romper
com os valores proclamados e propor uma práxis pedagógica transformadora a
partir dos valores reais, ciente das lições deixadas por Perrenoud, Freire e
Toffler: “A vontade de aceitar desafio é uma questão de sentido” (Perrenoud ,
2000: 48).
... o futuro não é ‘conhecível’ no sentido de uma
predição exata. A vida está cheia de surpresas surrealistas... A mudança
acelerante... fica sujeita à obsolescência... As estatísticas se aceleram.
Novas tecnologias suplantam outras mais velhas. Líderes políticos sobem e caem.
Apesar de tudo, à medida que avançamos para a terra desconhecida do amanhã, é
melhor ter um mapa geral e incompleto, sujeito a revisões e correções do que
não ter mapa algum...(Toffler, 1990: 20)
...São necessárias novas maneiras de pensar sobre
as mudanças que vêm alterando a face de nossa civilização ao longo das últimas
décadas, delineando assim um perfil mais abrangente da nova sociedade que
emerge das transformações [sociais, econômicas, históricas, políticas], ou
seja, de uma sociedade radicalmente diferente, movida por um novo sistema de
criação de riqueza que transforma o trabalho [e as relações ética e estéticas
dentro da macro e micros sociedades]. (Toffler, 1990: 33)
Ela seria tanto mais necessária porque é, como
veremos, a própria organização do trabalho pedagógico que produz o fracasso
escolar.... (Perrenoud, 2000: 17)
...O apoio pedagógico deveria evitar ou atenuar a
reprovação, fosse prevenindo suas dificuldades e fracassos, fosse acompanhando
alunos autorizados a progredir na formação sem ter todos os conhecimentos
requeridos. A idéia de base era, então, romper com a indiferença às diferenças,
instaurando uma pedagogia que ainda não se chamava ‘diferenciada’, mas que se
considerava como uma forma de discriminação positiva ou de educação
compensatória. (Perrenoud, 2000: 35)
Ensinar é uma especificidade humana.
Ensinar exige segurança,
competência profissional e generosidade.
Ensinar exige comprometimento.
Ensinar exige compreender que a
educação é uma forma de intervenção no mundo.
Ensinar exige liberdade e
autoridade.
Ensinar exige tomada consciente
de decisões.
Ensinar exige saber escutar.
Ensinar exige reconhecer que a
educação é ideológica.
Ensinar exige disponibilidade
para o diálogo.
Ensinar exige querer bem aos
educandos.
(Freire,1999: 8/9)
A questão da formação dos professores é,
inevitavelmente, levantada. A seu respeito, pode-se arriscar pelo menos uma
hipótese: se não incorpora a preparação à transferência em seus próprios
dispositivos, como poderia pretender favorecer, nos futuros professores, as
práticas pedagógicas ‘transferogênicas’? (Perrenoud, 2000: 70)
A substituição do trabalho bruto pela informação ou
pelo conhecimento, na realidade, é o que está por trás dos problemas atuais...
Portanto, o conhecimento é a chave do crescimento humano no século
XXI.
(Toffler 1990: 33)
O choque do futuro olha para o processo de mudança
– a maneira pela qual a mudança afeta as pessoas e as organizações. A quebra do
paradigma existente deverá se concentrar nas direções destas mudanças que ainda
virão para saber quem irá formá-las e como.(Toffler, 1990: 19)
O choque do futuro, como definição, baseia-se na
desorientação e tensão provocada ao se tentar lidar com um número demasiado de
mudanças num tempo demasiado curto – argumentando que a aceleração da história
leva a conseqüências próprias, independentes das reais direções da mudança. A
simples aceleração dos eventos e das fases de reação produz seus próprios
efeitos, quer as mudanças sejam consideradas boas, quer más.
(Toffler, 1990: 19)
Afirmava, também, que os indivíduos, as
organizações e até as nações podem ficar sobrecarregadas de mudanças demasiado
cedo, levando à desorientação e a um colapso em sua capacidade de tomar
decisões de adaptação inteligentes. Podiam, em suma, sofrer do choque do
futuro. (Toffler, 1990: 19)
1.5 - PARA PENSAR A ESCOLA
Escola é... o lugar onde se faz amigos. Não se
trata só de prédios, salas, quadros, programas, horários, conceitos... Escola
é, sobretudo, gente, gente que trabalha, gente que estuda, gente que se alegra,
se conhece, se estima. O diretor é gente, o professor é gente, o aluno é gente,
cada funcionário é gente. E a escola será cada vez melhor, na medida em que
cada ser se comporta como colega, como amigo. Nada de ilha cercada de gente por
todos os lados. Nada de ser como tijolo que forma parede indiferente, frio, só.
Importantante na escola não é só estudar, é também criar laços de amizade, é
criar ambiente de camaradagem, é conviver, é se amarrar nela. Ora, é lógico...
em uma assim vai ser fácil estudar, crescer, fazer amigos, educar e ser
feliz. (Paulo
Freire, 1999)
Não é o espaço escolar, mas o espaço da vida, onde
nos lembra Brandão (1981) o “viver o fazer faz o saber”. Da mesma
forma, Iván Illich (1974) ao se questionar sobre a serventia da escola na
América Latina, fazia questão de assinalar a existência de “processos
educativos no interior dos processos políticos e sociais” (Illich, I.,
1974: 12), não sendo estes, portanto, uma primazia da escola.Todavia, podemos
dizer que é através da escola que a humanidade começou a desenvolver uma teoria
da educação, ou seja, uma “pedagogia”, à qual o ato de educar deve estar
sujeito. É possível afirmar, assim, que com a chegada da pedagogia e da chamada
“educação formal”, vieram as regras, a organização do conhecimento, as divisões
do saber e os métodos tradicionais de ensino; entretanto, é indiscutível
também, que através da mesma, a educação passou a ser, como nunca antes na
história da humanidade, objeto de estudo e reflexão. Desse modo, a escola foi
criada com a promessa de sistematizar o ensino e favorecer a transmissão
cultural.
O antagonismo que a acompanha desde o seu
nascimento, no entanto, é o de constituir-se de um lado “num espaço de
democratização e formação individual e ao mesmo tempo de transmissão de valores
coletivos e consciência social” (Puiggrós, A., 1998: 10). Todavia, esta
contradição, ao oposto de diminuir-lhe a importância, apenas ampliou a
necessidade de que a educação escolarizada fosse encarada como um direito
universal. Análise da escola - sede da educação formal - não apenas, enquanto,
um espaço de produção e divulgação de saber, mas também, enquanto um espaço de
troca e intercâmbio de relações, isto é, de aprendizagem social. Embora a face
relacional da escola seja um tanto esquecida, quando refletimos sobre o que
seja a mesma, não há como priorizar um lado em relação ao outro. A valorização
das relações interpessoais e de um clima emocional positivo, em termos de
respeito e liberdade, são tão fundamentais quanto os conteúdos trabalhados em
sala de aula, para o desenvolvimento do educando.
O entendimento de que o conhecimento é,
simultaneamente, processo e produto de uma construção cognitiva, social e
emocional nos possibilita entender a importância do ambiente escolar, já que o
mesmo pode ser favorecido ou desencorajado, dependendo dos pressupostos
sociopedagógicos adotados no próprio projeto pedagógico da instituição escolar
e a forma como são postos em prática pelos profissionais competentes.Como
esclarece Soares (1999), a escola pode ser considerada como um texto escrito
por várias mãos e sua leitura pressupõe a compreensão não apenas de suas
conexões com a sociedade, mas também das suas relações internas, ou seja, da
rede de relações desenvolvidas entre os alunos, pais, professores e comunidade
escolar em geral. (Soares, K., 1999: 6)
Nesse sentido, não há como ignorar os conflitos e
tensões resultantes do relacionamento entre os diferentes membros da escola. De
um lado, temos os alunos que reclamam das obrigações, das normas rígidas,
dos controles, da alienação da escola em relação ao seu mundo; de outro, temos
os professores que reclamam dos salários, da inquietude dos alunos, da falta de
infra-estrutura; de um outro lado, ainda, os demais funcionários da escola, que
também têm suas demandas e reclamações, principalmente, no que se refere às
questões de ordem política e salarial; e, por fim, os pais dos alunos, cujas
preocupações e insatisfações, na maioria das vezes negligenciadas, também
influenciam nesse processo. Boa parte dos conflitos em jogo na instituição
escolar dizem respeito ao conflito entre as diferentes culturas envolvidas.
1.6 - UMA REFLEXÃO FINAL
Harvey (1993), ao analisar as características da
pós-modernidade, aponta para o caráter fragmentário e instável das verdades e
dos discursos produzidos na sociedade (que se baseia na produção e na
exploração de espetáculos e imagens da mídia que globalizam a cultura e a
economia). Entender os efeitos dessa globalização e o modo como ela interfere
no cotidiano da sociedade é um caminho para entender os descaminhos da escola.
Chiavenato (1998) considera que: a globalização é
um processo que age sobre o homem. As suas conseqüências sociais e econômicas
estão transformando o modo de vida da humanidade. Valores éticos e morais,
conceitos políticos e sociais, o uso da ciência e das artes, enfim, a cultura
criada pela humanidade em milênios está sendo modificada, substituída e, de
alguma forma, afetada radicalmente. (Chiaveneto, 1998)
Os reflexos dessa modificação estão presentes nas
relações sociais, no modo como o homem interage com o ambiente, com seus
semelhantes e consigo mesmo, promovendo desigualdades sociais, intolerâncias
raciais, de gênero e de crenças, assim como uma devastação planetária.
Por isso, segundo Gadotti (2000), é preciso pensar
em outra forma de globalização, “uma globalização da solidariedade, um
mundialismo sustentado na unidade política de um mundo considerado como uma
comunidade humana única, uma ética de governabilidade mundial”. Para tanto, é
preciso pensar em planetaridade e em uma educação para o futuro que privilegie
a solidariedade planetária e o respeito ao homem em sua totalidade.
Uma educação que, para ser autêntica, deve
respeitar a CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE. Essa carta, em quinze artigos,
traça um caminho novo para o homem e para a Terra, e em seu artigo 11 torna
claro o pensamento que norteia este trabalho:
Uma educação autêntica não pode privilegiar a
abstração no conhecimento. Deve ensinar a contextualizar, concretizar e
globalizar. A educação transdisciplinar reavalia o papel da intuição, da
imaginação, da sensibilidade e do corpo na transmissão dos conhecimentos.
(Gadotti,2000)
A última frase desse artigo é particularmente
esclarecedora quanto à importância de conhecermos a teoria das
inteligências múltiplas e de as aplicarmos nas relações educativas
desenvolvidas na escola.
Continuando nossa reflexão, não poderíamos deixar
de recorrer a Morin (2000), para dizer, com suas palavras, como deve ser visto
o homem, ou seja:
O ser humano é ao mesmo tempo singular e múltiplo.
(...)traz em si multiplicidades interiores, personalidades virtuais, uma
infinidade de personagens quiméricos, uma poliexistência no real e no
imaginário, no sono e na vigília, na obediência e na transgressão, no ostensivo
e no secreto, balbucios embrionários em suas cavidades e profundezas
insondáveis. Cada qual contém em si galáxias de sonhos e de fantasmas, impulsos
de desejos e amores insatisfeitos, abismos de desgraças, imensidões de
indiferença gélida, queimações de astro em fogo, acessos de ódio,
desregramentos, lampejos de lucidez, tormentas dementes... (Morin, 2000)
Contudo, parecendo desconhecer tais características
humanas, os pais e a escola, segundo Korczak (1997), apropriam-se de um
paradigma social de inteligência e “lutam contra todas as formas não habituais
de inteligência”. Sobre as crianças, perguntam se são ou não inteligentes,
quando a pergunta correta deveria ser como, de que modo são inteligentes.
Retornando ao texto de Saramago, valemo-nos de
outro trecho para concluir esta reflexão inicial. Assim como seus personagens,
podemos travar o diálogo que se segue:
Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se
chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não
cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.
Porém, enquanto educadores, é nosso dever articular
estratégias de superação dessa “cegueira”. É tempo de ver. E, para tanto, vamos
recorrer a Howard Gardner (1994) através de sua Teoria sobre as Múltiplas
Inteligências para olhar os nossos alunos e, vendo-os, vermo-nos também como
seres capazes de reverter o quadro que o cartunista espanhol Quino, através de
suas personagens, apresenta sobre a escola:
Cabe a que perguntar: a que escola Mafalda está se
referindo?. E Felipe? Tantas caras e bocas nos levam a ter que refletir sobre a
construção existentes no imaginário social sobre a escola que se tem e a que se
quer: a educação que se tem e a que se quer, pois a composição desse quadro de
referência irá nos possibilitar olhar para a realidade, usando os olhos de ver,
de perscrutar, de teorizar sobre a própria realidade vivida.
Mas sejamos rápidos nessa mudança de olhar, sejamos
rápidos na transformação, pois, segundo Bartolomeu Campos Queirós,
O tempo tem uma boca imensa. Com sua boca do
tamanho da eternidade ele vai devorando tudo, sem piedade. O tempo não tem
pena. Mastiga rios, árvores, crepúsculos. Tritura os dias, as noites, o sol, a
lua, as estrelas. Ele é o dono de tudo. Pacientemente, ele engole todas as
coisas, degustando nuvens, chuvas, terras, lavouras. Ele consome as histórias e
saboreia os amores. Nada fica para depois do tempo. As madrugadas, os sonhos,
as decisões duram pouco na boca do tempo. Sua garganta traga as estações, os
milênios, o ocidente, o oriente, tudo sem retorno.
E isso nos vem apontar a própria provisoridade das
verdades absolutas que, ao sabor do passar do tempo, novos quadros nos
apresenta, em sua constituição, em suas relações, em suas manifestações e
animações, devendo ter em mente a sua capacidade de mutação processual,
dinâmica, cotidiana, devendo nos colocar frente aos acontecimentos do nosso
tempo, buscando olhar com olhos de ver.
REFERÊNCIAS
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